Alforria

Alforria

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Depois de descobrir que seu closet era na verdade uma máquina do tempo acidental, a menina vestiu um cachecol e foi para qualquer outra época que o acaso a levasse. Chegou na verdade em outra realidade, onde o domínio econômico não existia. A moeda eram sentimentos, e ela estava no meio do que seria a depressão ocasionada pelo fracasso do comunismo do amor. Tentaram dividir sentimentos. Os mais amados compartilhavam o que recebiam com quem era considerado excluído. Nos primeiros dias as pesquisas mostraram índices record de abraços, solidariedade, amizade e amor. O amor eram as notas de 100. Eram as propriedades privadas. Por toda parte ela via cartazes estimulando o companheirismo, exaltando como esse novo sistema era perfeito e só traria o bem. Cartazes desbotados, rasgados.

Ela tentava abordar as pessoas na rua, mas todos deixavam bem claro que não queriam conversa, contato. Sentiam asco dos poucos que insistiam nesse sistema amigável. Alguma coisa tinha dado muito errado, mas ninguém sabia explicar o que. Passaram a viver na desigualdade sentimental como se fosse algo corriqueiro. Não questionavam coisa alguma. Se você tinha, era porque merecia. Se não, era porque precisava abrir mão de algo pra isso. Pessoas morriam pelo carinho. Alguns cafunés eram motivo de discussão e um beijo tinha se tornado um sonho o qual somente 1% da população alcançava.

Ela percebeu que, nessa realidade, tinha muito mais dinheiro do que precisava mas nenhum amigo de verdade. Sentiu pena por quem não tinha o mesmo closet que ela, e voltou ao seu tempo. Chegou e abraçou seus pais longamente. Abriu uma venda de limonada e vendeu cada uma por um preço muito abaixo do que seria aceitável por economistas. Acabou com seu cofrinho, e conquistou sorrisos. Alguns sem graça, outros espontâneos. Outros forçados. Juntou todos em um rolo de filme, e entrou no closet de novo. Chegando do outro lado, com um saco cheio de sorrisos emoldurados, viu que tudo tinha acabado. O desgosto se tornara uma epidemia sem vacina. Os últimos sobreviventes se trancaram em bunkers onde um simples olhar encarando outros olhos era válido. O toque tinha desaparecido. O tato era reservado a objetos.

Ela colou as fotos em um muro. Sentiu que cometia um crime. Sentiu-se do contra, uma sonhadora fora do seu próprio mundo, tentando salvar quem nunca trocou palavras.

Ao chegar em casa para o jantar tirou o cachecol.

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