Comunismo

Comunismo

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A menina gostava de cicatrizes. E tatuagens (que são, basicamente, cicatrizes coloridas). Qualquer marca que altere o corpo. Uma prova de que as pessoas viveram. Estiveram nesse mundo. Um “Eu passei por aqui” eterno. Onde eternidade compreende o intervalo em que a pessoa vive, por mais ínfimo que seja comparado à existência de um objeto celeste. Ela achava que a civilização era uma droga passageira, algo eventual, que poderia ser concretizado por qualquer outra raça de seres vivos, dado o tempo necessário. Portanto, o que importava eram as diferenças entre um e outro. Mas não as provenientes da genética. A chance é desvalorizada uma vez que não temos controle da mesma. As diferenças devem ser visíveis, imediatas, efêmeras. As manchas na pele eram lindas. Os deficientes possuíam uma beleza singular. Pode ser feio ver alguém sem braço de longe, mas caso ela mesma não possuísse um membro, ficaria acariciando o tempo todo, como um filho. Aquela imperfeição a deixaria especial. Até mesmo dores psicológicas, pra ela, se tornavam cicatrizes. Imaginava que tudo ficaria exposto, literais feridas abertas e, mesmo tendo orgulho de suas marcas, não gostava dos olhares de quem via. Eles não entendiam. Era como os macacos mais inteligentes do mundo, que sabiam fazer de tudo, encaixar os blocos nos lugares certos, dizer os nomes de cores e coisas. Mas nunca faziam perguntas. Até hoje nenhum outro animal soube perguntar nada. Pode pesquisar, é bizarro mas verdadeiro. Macacos e gorilas que aprenderam a se comunicar por sinais conseguem ter uma conversa igual uma criança. A diferença, além dos pelos, era que eles não faziam perguntas. Como se não tivessem curiosidade do que sabemos, do que podemos conhecer que eles mesmos não saibam. Não querem, não precisam ou não sabem questionar. Assim são a maioria das pessoas. Vivendo em um mundo em que julgam estar tudo certo. Se irritando com problemas corriqueiros, mas nada maior. Nada importante. Seu principal problema era o que vestir, quem encontrar, se tinham pilhas ou o gasolina. Até o dia em que se machucavam. Isso muda, quem quer que seja. É só ver quem volta de uma guerra, ou situação de risco, com ou sem feridas. Elas não são mais as mesmas, o mundo não é mais o mesmo, tudo deixou de ser de plástico. Feridas são o que nos deixam sóbrios. E a menina admirava a sobriedade. Se sentir crua, parte de algo imaturo e com muito espaço para cortes e arranhões.

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