Se der atenção para o mundo, qualquer coisa parece incrível. A forma como o vento muda a paisagem. Como ele é cruel ao fazer voar a fita que prende o cabelo da menina de vestido azul. Como a água transborda do copo que deixei enchendo mas esqueci nessa transgressão de realidade toda. Eles vão tirar tudo que me resta. Meu apartamento, meus móveis, meu cachorro. Vou assinar um papel e minha vida vai ser equivalente a fita do cabelo da menina de vestido azul.
Pare e pense em todos os doces que você deixou de comer enquanto tinha paladar pra isso. Estou sentado e, sem nem me dar ao trabalho, contei vinte e três. Vinte e três doces que não comi. E ao meu lado um senhor começa a cantarolar uma canção que nunca ouvi mas queria muito saber a letra. Ele fala algo sobre formigas. Imagino como deve ser a vida no reino das formigas. Se elas sonham, se roubam um pouco daquela coisa juntam em cofres para dar à rainha, se fazem surpresa para seus amores com um embrulhinho feito de folhas lisas. Se os federais derrubam a porta e arrastam a pobre formiga enquanto seu amor está de joelhos, em lágrimas.
Acho que não. Se elas chorassem assim o formigueiro viveria uma bagunça.
Pego o caminho mais longo para casa. Penso se devo avisar alguém que não morarei mais ali. Vou deixar um bilhete para a moça do 161. Nunca conversamos. Nunca tive coragem, não saberia o que falar. Ou melhor, até saberia, falaria da coroa de flores que ela usa aos finais de semana. Mas não saberia que cara fazer enquanto falava. Mas ela me ajuda. Nas noites sozinho fecho os olhos bem forte e consigo vislumbrar outras versões de nós, vivendo em prédios coloridos erguidos em universos mais amigáveis. Lá eu acordo e faço panquecas. Ela toma chá. Eu não tomo chá pois não acerto a quantidade de açúcar e parece um xarope. Ela coleciona selos e usa gravatas. Queria que usasse coroas de flores mesmo mas algo me diz que não posso exigir muito.
Escrevo tudo isso no bilhete e deixo la com um doce. Ela é minha única, melhor e última amiga, e não sei bem quando vou achar a próxima. Levo meu cachorro e uma mala de mão. Ameaço cantar a canção do senhor do banco, mas realmente não sei as palavras. Só lembro das formigas, mas é uma lembrança triste. Então rimo com barricas e está tudo bem. Passo pela praça na tentativa de encontrar a fita que o vento levou, mas começa a chover e meus sapatos são novos. É uma pena.