Perguntei pra terapeuta se teria como gravar as sessões e escrever um livro no final. Ela deixou, mas nunca consegui escrever nada. E qualquer psicólogo que você questione vai dizer que a terapia não tem final. Até ter, e você se pegar olhando pro teto nas terças-feiras depois do trabalho.
Dezenove dias antes do natal a gravidade passou a funcionar apenas 98,7% das vezes. Alguns animais e alguns pratos ou copos flutuavam sem razão nenhuma, para desespero da comunidade científica. “98,7% ainda é próximo de 100%, não devemos mudar drasticamente a sociedade” alguns pensadores diziam. Nenhum deles apresentava justificativa para aquilo.
Chego nos 30 com essa sensação de que não experienciei nem metade do que sei que experienciei porque meu grupo de amigos nunca foi muito de registrar esses momentos. E agora que tenho contato com um total de zero pessoas desse grupo uma parte de mim se sente dissociada dessas memórias. Não sei se é bom ou ruim. Ou ambos. Ou nenhum.
Depois do caos inicial, depois do octagésimo sexto ônibus decolando da estrada aparentemente sem motivo (aviões tiveram alguns problemas mas nem tantos quanto imaginavam) a vida continuou normalmente. Só com uma pitada de caos a mais. As contas das pessoas não sairiam flutuando rumo a não-existência. Talvez, fisicamente, o papel detalhando os gastos saísse, mas você entendeu.
Tenho esse sentimento interno de ‘a partir de hoje vou deixar meu legado’ com o intuito de criar algo que inspire alguém, de qualquer forma, ao mesmo tempo que se estivesse indo comprar pão e caísse uma mesa na minha frente, e 2,4 segundos depois (aqui a gravidade e resistência do ar ainda se aplicam) um aparato com um único botão vermelho no centro que apagaria todos os sinais da minha existência agora e retroativamente, eu não sei bem o que faria. Por isso acabo nem criando nada, até ter certeza. Pra evitar trabalho perdido, sabe.
O problema dessa situação toda da gravidade é que 1,3% é muito pouco para se que religiões surjam da situação então quase nenhum tipo de culto ganhou força. O impacto na civilização foi praticamente nulo. Teve alguns cientistas confusos, objetos voadores e acidentes a mais, claro. O mais curioso é que o número de atendimentos psiquiátricos subiu exponencialmente devido a isso, a falta de impacto. Sabe, as pessoas esperavam que acontecesse alguma coisa. O fim do mundo, invasão alienígena, uma descoberta científica que transformasse completamente nosso entendimento do universo. Mas a ideia de que uma lei fundamental da física poderia mudar, assim, do nada, seu filho ainda se atrasaria pra escola e ligariam pra você perguntando, era um pouco demais.