Constrição

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No começo ela não aceitou muito bem a ideia de se abrir para um velho marinheiro. Só de pensar nisso, “velho marinheiro”, parecia algo exageradamente caricato. Mas não tinha nada a perder, e estava nublado.

Sempre que passava por esses lugares com cheiros distintos pensava a mesma coisa: será que quem mora aqui sente também ou o cérebro aprende a ignorar como a ponta do nariz ou um ruído de fundo? Existe cheiro de fundo? Cheiro de peixe, cheiro de posto de gasolina.

O velho marinheiro atendia (ela não gosta de pensar que era um atendimento, mas não tinha palavra melhor) numa casa de madeira dessas que parecem nunca ter sido novas. Parece que tudo que você constrói na beira do mar tem essa aparência de que está ali antes de todo mundo. Não tinha placa nem nada, só um retângulo no pé da porta que um dia deve ter sido chamado de tapete azul. Ela deu duas batidas na porta e dois passos para trás. Pensou se deveria ter dado três batidas, duas parece meio informal, como se já esperassem a visita.

Ele já esperava, mas não dessa forma mais amigável, sabe? Três era o número ideal. A menina ficou feliz de ter chego nesse consenso, do número ideal de batidas. Imaginou uma versão menor de si mesma, com roupa social, sorrindo orgulhosamente dentro da sua cabeça, um ar de dever cumprido. “Não entramos numa discussão eterna sobre algo irrelevante hoje!”.

O velho marinheiro abriu a porta, meio rápido, já esperando ela mesmo (não pensou nada demais sobre o número de batidas, estava entretido com um jogo de palavras cruzadas), e pediu pra ela entrar e sentar numa poltrona verde. Era uma boa poltrona verde, com os braços altos, de forma que a menina parecia menor do que o normal sentada ali.

– Sabe o que é “um medicamento ou tratamento” com nove palavras? – disse o velho marinheiro, acendendo um cigarro.

– Acho que não – disse ela, pensativa, cavocando uma queimadura de cigarro no braço da poltrona.

– Que nó você precisa desatar? – disse ele, sentando perto da janela, e só então ela percebeu que tinha uma parede inteira com vários tipos de nós emoldurados.

– É que eu não consigo fazer quase nada por mim mesma. Assim, pra mim mesma, sabe? Eu sei fazer várias coisas, mas só quando não é pra mim. Assim, eu posso estar junto, mas não só pra mim, sabe?

– Que tipo de coisa?

– Hmm… Cozinhar, por exemplo, adoro cozinhar pros outros, qualquer coisa que me peçam, mas em casa como só as mesmas besteiras. Ou ler um livro, ver um filme. Isso me incomodou bastante quando percebi, que parei de ler porque não tenho mais com quem discutir o livro. Ou o filme.

– Tipo um amigo?

– É, eu tenho amigos, mas não pra falar dessas coisas, aí não quero ler só pra mim, sabe? Assim, como se ler fosse igual comer algo gostoso que eu cozinhei. Sabe?

– É você quer fazer essas coisas sozinha de novo?

– Sim. Eu acho.

– Sim, ou você acha? Não temos como reverter os nós desfeitos. Pelo menos não sem envolver muita dor de cabeça, não gosto de dor de cabeça, menina.

– Sim, com certeza. Quis dizer que acho que é isso, que não sei se teria outra forma de resumir meu problema. Essas coisas importam? Assim, o jogo de palavras, sei lá, tem chance de algo dar errado porque eu não disse a frase certa? Eu sou meio ruim pra formar as frases certas, sabe?

– Não tem problema, o seu nó é um só.

O velho marinheiro se levantou com o cigarro na boca e abriu um baú, remexeu um pouco e tirou um bolo de corda. Deu umas batidas pra tirar o pó, que não serviu de muita coisa, e levou pra ela na poltrona.

– Eu vou fazer um chá e você desfaz o nó. Não te ofereço chá porque só tenho uma xícara limpa. – ele virou e foi bater o cigarro antes de pegar um saquinho de chá em cima do fogão.

Ela ficou olhando aquela corda um tempo, se distraiu pensando que foi falta de educação falar aquilo do chá, ele podia nem ter comentado nada, ao invés de dar a desculpa da xícara. Começou a desembaraçar a corda pensando nisso. Não estava difícil, a maior parte era só de ficar um tempo jogada naquele baú mesmo, ela imaginou. Mas bem no meio da corda tinha um nó estranho, que ela não lembrava ter visto antes. Não que tivesse visto muitos nós na vida. Mesmo que tivesse, não lembraria deles. Ficou pensando quantos nós sabia fazer, e devia ser no máximo uns 3. Assim, que tinha certeza que eram diferentes.

Depois de uns vinte minutos conseguiu desfazer o nó. Não foi exatamente difícil, só meio chato e cansativo. Começou a enrolar a corda, mas o velho marinheiro viu de canto de olho e pediu pra ela deixar ali mesmo.

– Depois eu guardo. Espere um minuto que vou pegar seu recibo.

E foi pra outro cômodo.

Ela ficou olhando de perto os nós na parede, e gritou:

– Esses são de gente que não conseguiu desfazer?

– Não – ele disse entrando na sala com um papel na mão – São uns que tive que refazer. Muita dor de cabeça.

Estendeu o recibo pra ela. Dizia: “1 (um) nó, corda velha, poeira, baú”. Ela pegou, agradeceu e foi embora, preparando o nariz psicologicamente pro cheiro de fundo de peixe. Na volta pra casa comprou pão e ervilhas, mas não iria usar eles na mesma receita. Pensou em ler algo, mas não sabia se essa vontade veio naturalmente ou se estava forçando por causa de todo o negócio do nó. Queria que fosse natural, sabe?

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