Parabola

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Passando a cerca e a árvore morta, vocês verão um riacho. Sigam ele até uma ponte velha. Depois disso, encontrarão. E serão encontrados.

Dois amigos saem em busca de uma viagem espiritual, seja lá o que isso fosse. Não tinha nada melhor na televisão de qualquer forma. Levam porcarias pra comer, bebida, cigarros. Nenhum deles fumava. Mas uma viagem espiritual parece precisar dessas coisas. No caminho foram conversando e rindo, lembrando de histórias que estavam distantes agora. Bem no fundo o dois tinham medo da sensação de isolamento que sentiam ao se distanciar da cidade. Mesmo que quisessem não podiam voltar rápido para casa. Mesmo que quisessem não estariam embaixo do cobertor velho. Aquela sensação de impotência que acompanha a liberdade, mas que poucos conseguem perceber. Bom pra eles. Deus abençoe a ignorância. Quando estava escuro demais para procurar gravetos com facilidade, decidiram acender uma fogueira.  O fogo acalma, tranquiliza. Nada pode acontecer enquanto tivermos uma fogueira. Nada pode acontecer enquanto tivermos uma fogueira, e recheio de biscoito doce demais. Tentaram fumar, mas pelo jeito não ainda não tinham sido afetados pela viagem espiritual. A fumaça fazia a garganta arder. O cheiro de cigarro apagado era horrível. E olhar fixamente para o fogo parece cansar tanto quanto uma tarefa simples. E da mesma forma que as tarefas simples, nos faz pensar, tudo se transforma em filosofia. Lavar o carro é treinamento para karatê. Encarar o fogo é meditação budista.


O que precisamos fazer para que tenhamos calma. Estudar por um diploma, arrumar um trabalho, uma esposa. Nada disso parecia satisfazer, não aqui, olhando pro fogo. Talvez virar adulto seja não fazer mais perguntas, mesmo ainda tendo milhares de dúvidas. O que a amizade significava afinal? No roteiro da rotina que nossos pais nos entregam logo depois da primeira briga ao chegarmos tarde demais em casa não existiam tópicos sobre conquistar amigos. Tinha tudo sobre eletrodomésticos, automóveis, feições adequadas a determinadas situações. Uma lista do que cumprir, na melhor ordem possível. Mas nada sobre confiança. Nada sobre sinceridade (a não ser algumas citações sobre nunca ser sincero).


Ali na fogueira os amigos tinham tudo. Não seriam abalados por discussões e frustrações envolvendo motivos imbecis. resolviam problemas somente com olhares. O que você gostaria que mudasse? No fundo branco do fogo podiam ver o futuro. Podiam ver que um deles abriria mão de tudo pelo outro. O outro seria decepção. O outro, amaldiçoado por não ter os mesmos níveis de afeto, trocaria a amizade por sensações imediatas. Risadas de estranhos. Noites solitárias e curtas demais. Por motivos idiotas eles nunca mais se falariam. A viagem espiritual seria coisa de criança, besteiras que fazemos quando fugimos de casa. 


Agora se apresse pois precisa dormir cedo, amanhã tem uma reunião de emprego. Seu filho está chorando. Seu mais novo melhor amigo descobriu um lugar perfeito para encontrarem relacionamentos descartáveis, que podemos reciclar depois e transformar em um enfeite ridículo que deixamos no canto da sala de visitas com uma etiqueta chamada “experiência”. Minha antiga empregada foi demitida por polir demais a etiqueta e apagar o “experiência”, revelando “arrependimento”.


Quando acordaram, a manhã soprava um vento gelado. Um deles acendeu um cigarro e deu a primeira tragada que o mataria anos depois. Não de complicações pulmonares, mas atropelado por um trem ao se abaixar pra pegar o cigarro que ele mesmo derrubou na tentativa de cortar caminho pra casa, voltando de um bar escondido da terceira esposa. Não conversaram nada. Um dia se encontraram em uma loja de materiais de construção, e demoraram uns segundos para lembrar do nome completo um do outro.

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