A dor motiva o indivíduo a sair de situações perigosas, para proteger uma parte do corpo machucada enquanto ela se recupera e para evitar experiências similares no futuro. A maioria das dores acabam assim que o estímulo doloroso é removido e o corpo é curado, mas algumas vezes a dor persiste apesar da retirada do estímulo e da aparente cura do corpo; e outras vezes a dor surge na ausência de qualquer estímulo, dano ou doença detectável.
Um dia eu tive consciência. Eu vi, senti e deixei de sentir. Um dia uma criança desenvolveu a consciência de um jovem de vinte e poucos anos. Ninguém sabe porque isso aconteceu. Ninguém sabe porque os buracos negros consomem tudo que encontram. Se belisque, pressione as unhas na pele, espete algo pontiagudo, morda, arranhe, corte bata. Nos milésimos de segundo seguintes onde seu corpo conecta os estímulos nervosos necessários você é deus. Onipresente, pois nada existe, somente sua dor. Onisciente, pois tudo é simples demais, tudo se resume a dor. A sua dor. A única realidade.
A criança não queria se relacionar, pois para ela amizades são baseadas em desejos primitivos, orgulho, egoísmo, inveja. E amigos vão embora. Não queria ver os pais e irmãos, dizia que a família era o conjunto de convenções mais ultrapassado e inútil que a raça humana ainda mantinha do seu vergonhoso passado como primatas. Animais. Sem o conhecimento de si. Ela passava o dia procurando novas formas de provocar dor em si mesma. Um lápis, um giz de cera devidamente apontado, cortes com papel, chicotadas feitas com elásticos das roupas, qualquer coisa. Se macucava em intervalos fixos de 15 minutos. O pior de tudo era sua sinceridade e certeza. Ela dizia fazer aquilo para não ir fundo demais em seus pensamentos. A dor era seu bote salva-vidas. Era real. Era palpável. Como aplicar teorias de tratamento psicológico em alguém que fazia mais sentido do que tudo que foi ensinado nas horas e mais horas de estudo. Como convencer uma criança a voltar a normalidade das coisas, sendo que o mundo dela parecia tão perfeito. Em controle.
Quando perguntada o que faria caso sua família fosse embora e ela não tivesse mais o hospital para viver, disse que escreveria tudo que sabe em uma carta e pularia de um prédio qualquer. “Porque o prédio?” era minha única pergunta. Porque a certeza de morte deve se aproximar à catatonia da dor. Tudo era tão óbvio.
Um dia deixei a criança fugir. Ela passou 3 dias escrevendo 53 páginas, sempre parando a cada 15 minutos para sentir dor. No fim pulou de um prédio qualquer. Queimei o monte de papel e pus minha mão no fogo. Consegui ler somente a primeira frase antes de tudo ser consumido: