Seeds

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Não sei se essa história é verdadeira, não quero pensar sobre isso na verdade, e você também não. Afinal tenho essa mania de inventar tudo o tempo todo. Mas a senhora em questão ia e vinha todos os dias por uma estrada de chão que atravessava um terreno abandonado, e por várias vezes questionei ser a única capaz de vê-la. Deduzi o óbvio, que a invisibilidade e a falta de atenção são a mesma coisa. A senhora tinha curativos pelo corpo todo, e cada vez que voltava por aquele caminho aparecia com outro machucado fresquinho. Como uma boa menina curiosa e inconsequente, um dia segui a mulher pelo caminho, passando por um arco de árvores onde os raios de sol furavam e vinham bater diretamente nos olhos, parecendo fazer aquilo intencionalmente. No fim do caminho já estrava muito atrás da senhora que, acostumada com o trajeto, andava em passos largos e leves. Quando a trilha terminou em uma clareira pude ver uma espécie de casa na árvore, só que erguida a uns 30 centímetros do chão e caindo aos pedaços. Restava somente uma das paredes, que segurava um teto precário cheio de furos, esse por sua vez suportava uma lâmpada que milagrosamente piscava em intervalos regulares. Bem no meio da casa, dentro de uma gaiola em cima de uma mesinha, havia o pássaro mais belo que eu ou você já vimos. Era deslumbrante, sem cor definida, apesar do azul se destacar naquela iluminação, o sol batia em suas penas que refletiam todos os espectros de luz formando um efeito impossível de descrever. Tinha asas grandes, um bico delicado e olhos tristes. Não sei quanto tempo passei olhando fixamente pro animal, mas desviei minha atenção quando vi o reluzir de uma faca pequena, cravejada de pedras vermelhas. A senhora usou a faca para cortar uma lasca da sua perna, um pouco abaixo do joelho, dando gemidos de dor e rapidamente estancando o sangue com um pano vermelho. Foi tudo muito rápido e simples, claramente aquela era a origem dos ferimentos, que se repetiam dia após dia, por sabe-se-la quanto tempo. A senhora colocou o pedaço de carne em um pires e cuidadosamente enfiou na gaiola. O pássaro comeu ferozmente, se é que um ser tão belo poderia ser considerado feroz, e deu um pio de satisfação agradecendo a mulher. Ela passou então a cuidar do ferimento e voltou pelo menos caminho, sem nem olhar pra trás.

Isso tudo me deu muito o que pensar. Claro que como tudo na vida não sei que partes são verdadeiras e que parte eu inventei, afinal minha cabeça prega peças divertidas. Porque ela fazia aquilo? Porque dava pequenos pedaços de si mesma pra um ser sem aparentemente receber nada em troca? Ou será que recebia? Ou será que a simples visão das penas da ave no sol era presente suficiente? Nunca mais tive coragem de voltar, com medo disso ser verdade e me tornar dependente daquela beleza, afinal o vício já é vício assim que consideramos repetir a sensação. Mas fiquei abismada com tamanha relação simbiótica entre aquele pássaro e aquela senhora, com a forma como ele parecia satisfeito preso ali, e ela não reclamava de dar sua própria carne pra mantê-lo vivo. Até quando aquilo duraria? Até que ponto seu corpo aguentaria, e por quanto tempo estava fazendo aquilo? Quem alimentaria o pássaro depois que a senhora não tivesse mais forças para caminhar através das árvores e do sol? Era tudo tão horrível e maravilhoso. Não sei se essa história é verdadeira, não quero pensar sobre isso na verdade, e você também não.

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