Primeiro eu tinha que acampar na base da montanha por dias, torcendo pra que a espera não fosse longa demais e acabasse com meu estoque de suprimentos. Então quando finalmente a chuva parasse eu poderia subir, apressado pois ela logo voltaria. Em seguida precisava escalar uma escada com degraus que batiam um pouco acima do meu peito, tudo tinha que ser feito com pulos desesperados e aquele movimento de pernas típico de quem claramente não foi feito pra realizar esse tipo de feito. Depois montava acampamento ao lado de um ninho de grifos, e esperava. Esperava até a mãe trazer comida para os filhotes, uma espécie de broto super crescido, e às vezes junto dos brotos tinha uma flor roxa chamada de Lília. Tudo dependia da sorte e do quanto eu era silencioso ao pegar a flor no meio do vômito dos grifos. Então mais dois dias de viagem sem comer até chegar a passagem estreita, onde eu precisava estar magro o suficiente para esfolar o corpo nas paredes de pedra e conseguir chegar do outro lado. Claro que nesse processo tinha que largar minha mochila, e carregava somente alguns pães e a flor. Algum tempo depois encontrava uma caverna fétida e úmida, com pedaços de carne podre e vermes por todo o lado. Em algum lugar ali dentro vivia um ser que homem nenhum jamais viu, nem mesmo eu que cheguei uma vez a ficar cara a cara com aquela coisa, e agradeci aos deuses por não conseguir enxergar no escuro. A flor era pra ele, que claramente possuía visão e olfato apurado, pois eu não conseguia dar 5 passos na caverna sem que ele estivesse bufando perto de mim. A única coisa que tirava sua atenção de carne fresca era a flor de Lília e a beleza roxa que a flor exalava, junto com as linhas de perfume que era tão marcante que literalmente marcava o ar por onde passava. Deixando a criatura na sua caverna eu seguia o frio para fora dali, e andava meus passos finais até um paredão reto que se estendia acima das nuvens onde eu nem sequer imaginava poder chegar. Acorrentado naquele paredão tinha um homem sem roupas, esquelético e cabisbaixo. Ao chegar ele me olhava e dizia “você não desiste não é?”. E eu respondia que não saberia como desistir, mesmo se quisesse. Então perguntava como, como ele fazia para os corvos não comerem sua carne, como os espantava estando acorrentado ali sem nem mesmo uma pedra ao seu alcance. Ele ria alto e calava-se. Então ficávamos assim, olhando um ao outro até que eu percebia que meus pães não durariam a viagem de volta e ia embora. Por 27 vezes subi a montanha, e por 27 vezes ele me negou a resposta. Até que resolvi desistir. Resolvi deixar o pão acabar, e quando ele percebeu que eu não mudaria de ideia, começou a chorar. Disse “você não entende não é mesmo? Não posso te dizer como faço, não posso contar a verdade. Cada vez que você dá uma flor aquela criatura ela aquieta-se e parece saciar o único desejo da sua vida miserável. Ela fica tão fascinada que deixa de comer até não suportar mais, e sempre que sai caçar alguma coisa, perde a flor, derruba pela montanha. Então a criatura fica tão enraivecida que cria avalanches somente com os gritos, dizem que antes existiam grifos aqui em cima, mas agora eles todos desceram com medo da criatura. Esse barulho faz os corvos me deixarem em paz. Entende agora? Sua viagem me mantem vivo, sua busca infundada pela resposta é o que salva minha vida todas as vezes.”
Então sentei ao lado do homem, com as costas apoiadas na parede lisa. Esperamos juntos os corvos.
Sempre que eu passo por aqui, me dá um aperto no peito por ter deixado de escrever.. Suas palavras me lembram a dor da verdade que por tanto tempo senti, mas que aprendi a afogar com mediocridades.