Flash Flood Area

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Ele era louco, e ficava no topo de um morro vendo os barcos passarem, a tarde toda. saía sem documentos, nenhum documento (eu avisei… l-o-u-c-o), porque “isso era o mais próximo da liberdade hoje em dia”.

Uma vez fizemos tortas por uma semana pro carteiro inventar uma desculpa e entrar na casa do homem, ver o que tinha lá. As teorias variavam de cabeças empalhadas a coleções de ursos de pelúcia. O carteiro disse que só conseguiu ver velas, muitas velas, como se a casa toda fosse cenário de um funeral exagerado. Acho que isso era um meio-termo entre cabeças e ursinhos.

Meses depois eu estava organizando o concurso de jardins do bairro, e precisava visitar aquela casa. Claro que estava com medo, mas também muito curiosa, e pensando que pena que não ganharia uma semana de tortas por isso. Toquei a campainha e ele me atendeu muito simpático, pedindo pra limpar os pés antes de entrar, e oferecendo chá. Nunca ouvi falar de chá envenenado então aceitei, pensando que essa do chá envenenado era uma ótima coisa para enganar telespectadores, e iria sugerir para a rede de televisão, quem sabe eles me mandavam uma cesta de doces, ou uma toalha.

Tinha mesmo velas lá dentro, muitas velas, e parecia mesmo que a casa toda era cenário de um funeral exagerado. Mas ele não colecionava velas, e sim candelabros. Fiquei observando enquanto esperava pelo chá. Tinham tipos simples de metal, prata ou algo que o valha, até uns de bambu ou qualquer coisa assim, desses países orientais. Preenchiam as paredes, as prateleiras, em cima das mesas, nos lustres. Percebi que a casa não tinha luz elétrica, somente as velas, e pensei no tempo que ele gastava somente para acender e apagar aquilo tudo diariamente.

Estava distraída demais para perceber que o homem ficou parado do meu lado por algum tempo, segurando o conjunto de chá. Quando ele falou levei um susto… “minha mulher adorava velas, sabe. E fiz a promessa besta de acender uma vela por dia para ela. As velas duram mais do que imaginei, então preciso de muitos candelabros.”

Conversamos sobre plantas e chá depois. Fui embora e ele não quis se inscrever no concurso de jardins, disse que não tinha muito tempo livre com tantas velas pra trocar. Curioso porque mesmo dizendo isso ainda ficava sentado todas as tardes vendo os barcos passarem.

Alguns meses depois a casa toda pegou fogo, e acho que ninguém se surpreendeu, pelo menos eu não me surpreendi. O homem não se machucou, não estava em casa nessa hora, estava vendo os barcos no morro. Ele mudou-se, e não ouviram mais falar dele. O lugar todo ainda cheira a parafina.

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