Sobretudo

Sobretudo

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Toda vez que chego em casa a fechadura é diferente. Uma noite ela era preta de ferro antigo, e quando abro a casa toda é uma masmorra escura, iluminada por um lareira acabada, tudo cheirando terra úmida. Outro dia ela era prateada e estava de ponta cabeça e ao entrar quase quebrei a clavícula, batendo no lustre de vidro quando caí no teto.

Meu trabalho é fazer cadarços, somente pretos de 55 centímetros.

Outro dia quando cheguei em casa a fechadura era minúscula, achei que a chave não caberia. A casa estava pequena, tive de andar abaixado e quase fiz uma bagunça dando cotoveladas em chaleiras e panelas.

Quando a fechadura estava branca com detalhes dourados, abriu logo que virei a chave, estava quebrada. Lá dentro tinha um anjo, ele me viu e disse que sua auréola estava ficando frouxa demais, e era perigoso ele se enforcar.

Uma vez troquei uma redação de “conte como foram suas férias” da minha sobrinha por outra que fiz sobre o quanto as pessoas são fúteis e como dão valor pra qualidades, quando essas são facilmente imitadas e ninguém liga pros defeitos, a única maneira de se diferenciar das pessoas. Ela foi em um psicólogo por alguns anos.

Um dia não tinha fechadura nenhuma, e quando empurrei a porta quase caí em um abismo sem fim, tive de dormir pra fora.

Quando a fechadura tinha pontas que machucavam as mãos, lá dentro estava alguém de costas, pedindo um abraço, e não sabia se eu devia fazê-lo.

Quero ter uma doença daquelas que se possa ir a grupos de ajuda. Com direito a “oi meu nome é… e o primeiro passo é aceitar” e “agora deite no ombro de alguém e chore”.

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0 thoughts on “Sobretudo”

  1. Um conselho? Use portas de vidros. Ou automáticas, dispensam o uso de fechadura, mas vê se não vá esquecer da senha. Se mesmo assim, cada dia for uma, você ainda sairá no lucro. Normas de segurança, meu caro. Pra esses dias doentis e cinzas.

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