Segurança

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Sentir é muito fácil, como morder a língua por exemplo. Ninguém procura isso, mas acontece o tempo todo.

O momento mais intenso da minha vida foi quando um gato morreu nos meus braços. Ele não tinha casa, era sujo, cego de um olho, machucado, sabe-se lá com quantas doenças. Todo mundo mandava ele embora, chutava, jogavam coisas, os pais diziam pros filhos não chegarem perto. Mas ele nunca fugia, sempre aguentava parado os objetos arremessados, e depois ainda tentava se enroscar nas pernas de quem jogou e miar procurando carinho. Ninguém nunca deu valor, mas ele sempre procurava reconhecimento. Um dia ele procurou com os cachorros errados, e eu ouvi os gritos de desespero. Quando cheguei la ele estava numa poça de sangue, se arrastando numa tentativa desesperada de se agarrar à vida. Peguei ele no colo e corri pra casa, pensando no que poderia fazer pra ajudar o bichinho. Então ele lambeu minha mão, passou a cabeça daquela forma que gatos fazem e ficou ronronando. Mesmo morrendo, com uma dor enorme, ele tantava ser carinhoso, queria atenção. Aquele gato me ensinou muito mais do que meus pais, ou professores. E hoje tudo que eu faço é por ele.

O momento mais intenso da minha vida foi quando finalmente tive coragem de falar que gostava de uma amiga. Ela disse que daria uma resposta depois e saiu rápido. Passei 4 dias esperando, me culpando por ter feito aquilo, por ter sido egoísta e iludido. Ela me ligou e disse para esperar em casa que eu teria uma surpresa. Duas horas depois ligou de novo, e falou, com um barulho alto no fundo e um carro derrapando, que me amava. Eu perguntei “o que? não entendi” mas tinha entendido, só não acreditava. Ela disse que me amava e era tudo que eu precisava saber. Um motorista bêbado tinha atravessado o sinal e atropelado ela, os barulhos no fundo eram dele batendo a porta e fugindo. Ela poderia ter ligado pro hospital, mas decidiu ligar pra mim. Se parar para pensar em todas as diferentes possibilidades que poderiam acontecer, não vou aguentar a pressão. E se eu não tivesse dito nada? E se eu tivesse dito antes?

O momento mais intenso da minha vida foi quando fui sorteado pra ler histórias para uma senhora num asilo. Era um trabalho ridículo, ela não ouvia muito bem e fazia perguntas sem sentido, todo dia eu chegava em casa e reclamava sobre o quanto azarado eu era, de todas as pessoas na sala eu fui o sorteado. Eu nunca mudei de história. Sempre contava a mesma, era sobre uma menina idiota que gostava de tomar chuva e seus pais brigavam com ela, e as últimas páginas estavam faltando então nem sei o que acontecia, mas a senhora não ouvia mesmo. Um dia essa senhora faleceu, e me chamaram no asilo. Eu nem sabia o nome dela, não dava a mínima, mas ela tinha deixado uma carta pra mim. Na carta ela agradecia pelas histórias, e por ter ficado do lado dela. Agradecia por ter sido seu último amigo, e pedia desculpas por ter de pedir um último favor a mim, pois não sabia mais a quem pedir. Ela queria ser enterrada em uma cova bem perto do chão, para poder sentir a chuva.

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