A window on a door

A window on a door

Categories blur


Desde a primeira tecla que apertou no pequeno piano de brinquedo que veio embrulhado em papel brilhante, ela sabia o que queria. E desde esse primeiro som ‘aquilo’ estava estava ali, mas era pequeno demais para que a menina notasse.

Ela aprendia rápido e tinha muito talento, apesar de seus pais não insistirem em disciplina ou incentivassem para que continuasse tocando. Passava boa parte do seu dia sentada no piano, dedilhando músicas infantis e temas de desenhos animados. E aquela massa disforme acompanhava, nota por nota, como se fios de cabelo emaranhados dançassem no ritmo da música, mas de maneira perturbadora e surreal, flutuando etéreamente. Mas a menina não notava, ou ignorava, como se nada entrasse naquela bolha criada pela música. E assim que parava de tocar, ‘aquilo’ desaparecia.

Foi numa noite de outono, depois de acordar de um pesadelo e decidir ouvir o piano para se acalmar, ela percebeu a coisa que a acompanhava o tempo todo. Ficou horrorizada ao descobrir que sua música criara um ser tão bizarro, e gritou alto. O grito foi o último som que ela produziu por muito tempo. Montanhas de dinheiro foram gastas em especialistas de todo o tipo para descobrir porque ela parou de tocar e falar. Seus pais entraram em depressão e sua mãe eventualmente acabou ingerindo remédios para dormir demais, e álcool demais.

Um dia a menina acordou e seu pai estava pendurado no lustre da casa. Ela não disse nada, não sentiu nada. Pegou seu pequeno piano empoeirado e levou no meio do jardim. Começou a tocar uma mistura de várias melodias, ah como sentira falta daquilo. Logo percebeu que ‘aquilo’ tinha surgido, dançando, crescendo conforme a música, dando espasmos. Como se a própria palavra grito tivesse tomado forma. Como se a própria palavra desespero tivesse tomado forma. Mas ela não estava assustada, continuaria tocando fosse o que fosse.

‘Aquilo’ começou a ganhar uma forma humanóide assustadora, alguém tentava escapar de dentro de um mundo esquecido e ela queria ajudar. Tocou o pequeno piano como nunca havia feito antes, compôs melodias belas e fortes, seus dedos queriam parar mas ela os obrigava a manter o ritmo. A coisa agora era enorme, se contorcia no chão, não emitia som algum mas seus movimentos eram espasmos e qualquer um podia imaginar a agonia. Finalmente a casca pareceu rasgar, na última nota, e um menino caiu no chão, exausto. Ela desabou ao seu lado, e teve que rastejar para chegar perto. Ele olhou para ela e sorriu, agradeceu. Disse que não deixaria mais ela ficar sozinha, seria seu guardião, seu escudo e espada, e ela poderia tocar sempre que quisesse, criar as músicas mais lindas que já existiram, mesmo que ninguém mais ouvisse.

Categories blur

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *