Obscene

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– Como sabe que não vai cair em ninguém?
– Não sei.
– E se cair?
– Não vai cair.

E suas conversas eram sempre assim. Falava tudo com um ar de certeza, mesmo nunca explicando nada, e diabos, nunca estava errado.

Lá estávamos nós, subindo sessenta e dois andares pelas escadas. Luz, sem luz, luz, sem luz. Só reparavam que as lâmpadas de emergência tinham queimado quando o prédio pegasse jogo ou algo que o valha. Quando chegássemos lá em cima, ia ter um piano esperando no elevador de serviço. Desses pianos de cauda caríssimos, que você nunca vê de perto.

Ele ia cair silenciosamente por sessenta e dois andares, o que deve dar uns trinta segundos, e se arrebentar no chão, soltando uma última nota. Eu disse que seria um Dó, ele disse que seria um Lá sustenido. E ai surgiu a aposta.

Os elevadores de serviço de alguns prédios não voltam automaticamente, para casos como esse. Senão teria que ter alguém lá em cima esperando a carga chegar, ou o elevador desce e toda essa coisa chata. Acho que já deu pra deduzir que não cabíamos junto com o piano no elevador.

– E se cair? Não da pra saber, pode ter um velho ou uma babá com o carrinho de bebê passando na hora.
– Não vai cair, eu só sei.
– Se cair em alguma criança eu vou me entregar pra polícia.
– Tá bom.
– E você?
– Não vou te entregar pra polícia.
– Não isso. Vai se entregar?
– Pra que me entregaria?
– Sei lá, consciência pesada…
– Não.

Deixamos o piano ali na beirada, preso por uma corda, que por sua vez estava presa a uma roldana que se soltava a corda por controle remoto. Meu medo era que o vento lá de cima fizesse tudo cair antes.

Descemos, pra mim demorou muito mais que a subida. Mas chegando lá em baixo dava pra ver que nada tinha caído, agora era só esperar a coisa toda funcionar. Ele nem esperou a rua limpar nem nada, apertou o botão e deu pra ver o piano deslizando lá de cima, bem pequeno.

Isso hipnotiza. Não consegui olhar para baixo ver se alguém estava na rota de onde ia cair. só fiquei olhando pra cima, primeiro sem pensar em nada, depois me vi em uma sala branca, regando um pé de tomate, e um menino olhava pra mim.
– Papai, pra que as borboletas voam?
– Ora, elas são leves e batem as asas, normal.
– Não como elas voam, mas pra que elas voam? Pra que papai? Hein?

Depois lá estava eu tocando aquele mesmo piano, e cada nota fazia alguma coisa retorcer como se fosse metal derretido e mole, foi tocando e tocando e tudo ia retorcendo até sobrar somente a platéia extasiada aplaudindo de pé. Continuei tocando animado e as pessoas começaram a retorcer também, e os gritos, ossos furando a pele e o sangue que espirrava quando uma artéria ficava sem ter pra onde bombear todo aquele sangue.

Ouvi um latido vindo do chão e era meu primeiro cachorro, com a língua de fora e abanando o rabo. Como era mesmo o nome dele?

Nisso o piano caiu, soltando uma nota bem mais alta que imaginei.

E tudo se retorceu enquanto a nota soava, vidros quebrando, alarmes disparando, pessoas caindo no chão com as mãos nos ouvidos e bocas abertas gritando gritos baixos demais para ouvirmos.

– É, não caiu em ninguém.
– Não.

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