Acrílico

Acrílico

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Um dia ela parou de ligar pro seu pai perguntando o que fazer em seguida e passou a confiar cegamente nos sonhos.

Acordava de um enorme galpão cheio d’água, onde conseguia voar com leveza fazendo movimentos nunca antes vistos de balé, para comprar um aquário e se matricular em dança de salão.

Passava a noite em uma bolha paralela conversando com uma joaninha de chapéu coco e a primeira coisa que fazia ao acordar era achar o vestido de bolinhas no tom de vermelho certo.

Sua vida entrou em uma espiral de desgraças bem rápido, mas os sonhos continuavam, cada vez mais e mais intensos.

Em três dias perderia o apartamento, e a maior preocupação daquela tarde era cozinhar uma sopa azul, com flores.

Quando a obrigaram a tomar remédios, todo dia às 14h, depois da conversa com a psiquiatra, foi que a realidade bateu. Dura. Fria. Áspera. A insônia levou os sonhos, trouxe as vozes, os flashes de consciência e uma pedra no estômago. Por três meses ela viveu sóbria do etéreo, por três meses ela concordou com tudo novamente, e perguntou o que fazer em seguida. Vista-se. Lave o rosto. Coma. Procure um emprego. Faça amizades. Pegue o ônibus pra esse lugar tom pastel. E no ônibus ela encostava a cabeça no vidro e fechava os olhos, sem sucesso, ouvindo as conversas alheias e gritando num travesseiro imaginário, sua válvula de escape, a única que conseguiu contrabandear do subconsciente distante.

Até que ouviu o cobrador falar com todas as letras sobre ele ser Deus. E o riso do motorista, ela podia jurar que tinha um alívio naquele riso, como se estivesse feliz por não estar maluco. Mas isso por si só era maluquice, ninguém percebe essas coisas. O cobrador dizia ser Deus pois achou um buraco na parede, onde ficava um caixa eletrônico e, exatamente às três e quarenta da madrugada, você poderia enfiar a cabeça nesse buraco e gritar um desejo. Ele pediu para ser Deus. E então, pra provar isso, abriu as portas sem usar as mãos.

A menina levantou de supetão, correu até a porta e voou.

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