Amora

Amora

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A menina tinha o que chamavam antigamente de “desenvolvimento tardio”. Ou “meio imbecil”, como seu tio costumava dizer para a ex-ex-esposa. A fase de perguntar tudo só chegou aos doze anos. E sua avó era bem paciente, a melhor pessoa para te ensinar a dirigir, mas o número de perguntas feitas no meio do preparo do jantar dava nos nervos. Ela estourou no dia das perguntas sobre medo. “Porque tenho medo de cigarras?” – dizia a menina. “Porque a senhora tem medo de armas? Porque eu tenho medo de entrar na escola todo dia?” Enquanto fingia ler uma embalagem de farinha a avó disse que todo mundo tinha medos, e a melhor forma de lidar com eles era escrevendo todos num caderno. E foi isso que a menina fez.

Medo de agulhas. Medo de dentistas. Medo do barulho da madeira da casa da vó a noite. Medo de bater a porta sem querer. Medo de brinquedos que caem sozinhos. Medo de trair a pessoa que casar comigo. Medo que a pessoa que case comigo me pegue traindo ela. Medo de abrir a latinha de refrigerante que alguém chacoalhou. Medo de girafas com o pescoço tão longo que parece que vai quebrar.

Isso ajudava bastante. Ela parou com as perguntas assim que entendeu mais sobre como o mundo funcionava, o que não foi exatamente a melhor coisa do mundo. Não estava nem entre as 10 melhores coisas. Logo atrás de alcaparras, que ficavam boas só em tortas, mas nem toda torta, era difícil explicar. Como é difícil explicar como o mundo funciona de forma diferente nas terças e quintas. Como é difícil explicar quando gostamos de alguém que bateu a cabeça na mesma lixeira que batemos.

Medo de alguns pássaros. Medo de sempre ser diferente. Medo que nunca mais goste de nada na televisão. Medo de botar coisas no ouvido. Medo que sua melhor amiga viaje para outro país e esteja tomando café no final da tarde e chegue a conclusão que sua amizade não vale assim tanto a pena mas fique sem graça de falar isso porque sente pena de você e apenas mude seu sotaque gradualmente para que você se sinta cada vez mais distante de quem ela era antes da viagem. Medo de gente muito alta. Medo de macacos, mas só ao vivo. Medo que inventem algo pra deixar as pessoas invisíveis. Medo de carros invisíveis. Medo de estar tão compenetrada na leitura que comece a ler em voz alta em público e te olhem torto. Medo de pegar na mão da pessoa errada, como fazemos quando somos crianças no shopping. Medo de ganhar abraços estranhos.

No primeiro dia em um emprego novo, daqueles que nem lembramos direito o nome da empresa, ela comprou um bilhete de loteria quando dava voltas no quarteirão na hora do almoço, só pra fingir que essas voltas tinham propósito. No dia seguinte ela ganhou setenta e dois milhões.

Medo de quando o telefone toca depois da meia-noite (depois dos trinta anos ela mudou ‘meia noite’ para ‘duas da manhã’). Medo de ligar a tv e o volume estar no máximo. Medo de se perder no hospital. Medo de sair com alguém novo e no meio do encontro a pessoa procurar confusão. Medo de ir pescar e o azol de alguém prender nas suas coisas. Medo de esquecer de limpar a areia do gato. Medo de perder a mãe. Medo de esquecer que usou um ingrediente e só se dar conta na metade do preparo.

Não conseguiu buscar o prêmio, por alguns medos que entraram para a lista depois. Emoldurou o bilhete e nunca mais jogou na loteria. Mas bordou os números na toalha do seu filho, quando ele fez 5 anos, junto com um trenzinho e um foguete desses que as pessoas pilotam até a lua.

Medo de engasgar com espinhas de peixe. Medo de engasgar com espinhas de peixe enquanto está sozinha. Medo de avião. Medo de satélites desgovernados. Medo de machucar o sentimento dos outros. Medo dos outros machucarem seus sentimentos. Medo de ficar presa no elevador com gente que grita nessas situações.

Medo de que essa seja lista seja a última ideia que eu tenha.

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