Avocado

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Sem mais nem menos uma menininha acordou no meio do que deveria ser uma plantação de sorvete. As plantas pareciam ervilhas enormes, mas ao invés de serem mesmo ervilhas eram bolas de sorvete contidas em casquinhas. Ela não tocou em nada, porque aprendeu que não devia. Não era dela. No final da plantação tinha uma praça. Só então ela pensou estar sonhando, pois sabia que não existiam praças ao lado de plantações. Já sobre o sorvete não tinha certeza, nunca tinha pensado como eles nasciam. No meio da praça estava um senhor sentado. Ela sentou ao lado dele e esperou que puxasse papo, porque não era muito boa nisso, e geralmente as outras pessoas eram. Mas ele não disse nada, nem olhou para a menina. Depois de uma eternidade pensando em como falar, ela contou até 6, mentalmente, e se levantou:

– Olá! Não sei onde estou, aquilo é sorvete mesmo?
– Olá, eu sei onde estou, é sorvete sim, estão maduros.
– Olá, onde estamos? Como sabe que estão maduros?
– Olá, estamos levemente para a esquerda do centro da praça, sei porque aprendi a identificar quando sorvetes estão ou não maduros.

A menina ficou um bocado desapontada. Estranhos costumavam ser mais prestativos. Pelo menos aqueles que não se encaixavam nos grupos criminosos que jornais descreviam. Tinha escolhido ir embora sozinha. Já sabia amarrar os sapatos. E tudo que precisava para chegar em casa era os sapatos. Mas estava irritada com o homem do banco, e decidiu ser a última que dava a resposta. Tinha visto em filmes que os últimos que dão a resposta eram os mocinhos. E mocinhos sempre acabavam com as roupas limpas no final.

– O senhor foi muito inútil, obrigado. Digo obrigado pois não tenho certeza de que exista a versão feminina de obrigado, acho que isso é invenção das nossas avós. Tenha bons sonhos sempre.

Quando ela disse ‘sonhos’ ele se revirou.

– O que sabe sobre sonhos? Tem algum com você, por acaso?
– Ora é claro que não, deixo todos embaixo do travesseiro. Não carregaria algo tão pesado.
– Veja só, você aqui, sem sonhos. Não pertence a esse lugar, então deve ser um de nós. Você é um sonho.
– Não sou não, pois tomei café hoje pela manhã. Sonhos só aparecem a noite.
– Então me responda, para onde vão os sonhos esquecidos? Aqueles que não nos lembramos ao acordar?

Ela pensou e pensou, mas não fazia a menor ideia. Só lembrava dos sonhos que teve. – Ele continuou:

– Eles vem pra cá. Este é o lugar dos sonhos que ninguém conta, ninguém lembra. Acabam aqui, misturados com outros sonhos esquecidos de todas as pessoas, e não saem nunca. Está ficando apertado. Até pesadelos tem seu lugar, mas nós não. Nós vivemos embaixo do tapete, no canto do sofá, atrás do armário que ninguém move.
– Isso é uma tristeza senhor. Mas vocês tem sim seu lugar, é aqui. Não precisa ser dramático. E o que eu estou fazendo aqui? Não deixo de pensar que isso tudo é um sonho, esquecido ou não, e que logo vou acordar. Porém não sei onde o sol se põe. Mas sei que devo seguir para o outro lado, pois o alarme do dia é o sol, e não sonhamos por dois dias seguidos.
– Você é um sonho. Alguém sentiu sua falta e queria sua presença, do fundo do coração. Mas às vezes isso não basta. Sentimentos são puros, mas não absolutos. Esqueceram de você, e do que você representava. Ou pior, substituem. Você foi esquecida, e acabou na plantação de sorvete. Deveria ficar feliz, existem lugares bem piores para se acabar. Quando digo que não temos lugar, é porque aqui não é lugar algum. É onde sobrou, à parte de tudo. O limbo fora do próprio limbo.
– Mas que pena, eu queria muito meus lápis de cera, se soubesse os teria trazido. O que vocês comem por aqui? E quem será que sonhou comigo? No sonho eu deveria estar bonita, não? Já que era um sonho.

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