Bonjour

Bonjour

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Prestes a desfrutar de um dos poucos momentos de satisfação do seu dia, o velho faxineiro ouviu música. Colocou a chaleira novamente no fogão, com relutância. De onde estava vindo a música? Nessa idade e não se pode mais tomar uma xícara de chá antes de dormir. O mundo não é mais o que deveria ser. Trocou os chinelos por galochas gastas, pegou a lanterna e subiu a escada. Era um piano, em alguns dos andares de cima, pois estava baixa e ecoante. Não importava o dia, motivo ou horário, ele sempre odiava passar por aqueles corredores.

Evitava pensar em como e porque acabara ali, cuidando da sua antiga escola. Cuidando do laboratório que ajudou a transformá-lo nesse monte de mesquinharia e revolta com o chá fora do ritual. A escola não passava disso, um campo de concentração preparando crianças para a vida adulta. Vivenciem a droga que é a vida em sociedade. Sintam-se frustrados por não conseguirem atingir metas estipuladas por pessoas sem sentido e que não tem nada que se meter em sua vida. Experimentem fracassos, traições, inveja. Tudo em pequenas porções, para não enjoar. Sairão com uma vontade imensa de viver isso por inteiro, ah sim, não tenham dúvidas.

Quando mais se aproximava da música, mais bonita ela ficava. Era alguma coisa clássica qualquer dessas que pessoas com o cabelo feio gostam e que tocam em teatros. Uma vez sua professora pediu um trabalho sobre orquestras. Ele não entendia nada de como aquilo funcionava, como todo mundo tocando algo diferente fazia sentido. Era uma barulheira só. Agora estava começando a entender, e gostar. Diminuiu o passo para levar mais tempo e poder apreciar as notas do piano. Durante o caminho esqueceu seu chá interrompido. Esqueceu os corredores, os fantasmas escolares. Uma parte do velho ranzinza queria sentar ali e deixar a música acabar.

Mas esse não era seu trabalho e, ao chegar em frente a porta da sala de onde vinha a música, encheu os pulmões de ar e tirou forças para chutar a porta, fazendo-a bater na parede e interromper a música de supetão. Quem estava tocando era uma menina, com o cabelo desarrumado e latas de spray. Era dessas jovens engajadas no maior número de atividades anti-qualquer coisa que pudesse participar. Todo o ato da música serviria para protestar contra a demolição do colégio. Transmitir uma mensagem que mesmo edifícios abandonados tem cultura ou qualquer merda assim. O velho pegou a menina pelo braço e jogou ela pro lado oposto da sala. Seria o suficiente para levar uma surra, se alguém tivesse visto aquilo. Abaixou a tampa das teclas do piano com força. Quando se virou a menina não estava mais ali.

A música tinha acabado. Se pudesse pedir qualquer coisa agora, seria para sua água estar fervendo ao voltar. Mas não estaria. Sabia que não.

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