Em uma quinta-feira chuvosa, nasceu o primeiro bebê reincarnado que se tem notícia. Não foi o primeiro realmente, mas aquele que recebeu mais atenção. A partir daquele dia todos que morriam acabavam renascidos em outros corpos e, por volta dos 3 anos, começavam a se lembrar de quem foram na vida passada. É claro que o fenômeno levou pelo menos 3 anos para ser sequer cogitado, quando os bebês nascidos na quinta-feita chuvosa passaram a alegar que eram adultos, jovens e crianças que morreram anos antes. O número de crianças que acordavam sendo uma pessoa completamente diferente crescia cada vez mais. O caos estava instalado. Ninguém queria ter filhos com medo de que, ao chegar em certa idade, surgisse uma mente estranha vestindo pijamas de animais dados pelas madrinhas. Houve um aumento exponencial na frequência de qualquer estabelecimento religioso, todos procurando explicações (ou tentativas de) para o que estava acontecendo. Conforto. A ciência passou a ter credibilidade equivalente à que possuía na idade média, ninguém queria ouvir teorias de ‘migrações telepáticas’ ou ‘transporte espontâneo de consciência’.
As primeiras ‘neo-crianças’ passaram a procurar suas vidas antigas, abandonando completamente as famílias que tinham lhes criado até essa idade nova. Surgiram as primeiras celebridades, lançando livros e dando entrevistas sobre sua experiência. Os casos mais famosos eram os de crianças que procuravam pessoas com quem tinham relações passadas para encontrá-los em vidas novas, sem querer retomar qualquer contato com essa pessoa que dizia ser alguém enterrado, cremado, esquecido. Escândalos familiares se tornaram rotina, eram raros os casos em que a volta servia de consolo e a criança com uma consciência diferente acabava aceita novamente.
Mas com o tempo os casos mais numerosos se tornaram os de famílias esperando a volta de entes queridos. Pacientes terminais procuravam a morte, sabendo que renasceriam saudáveis. Amigos e familiares aguardavam por três anos o contato de quem tinha falecido, para recomeçar. E aí surgiram os relatos de quem não queria voltar. Quem não queria ser descoberto. Adultos renascidos se faziam passar por crianças manipulativas, para evitar serem cadastrados nas novas políticas governamentais para manter controle. Hora ou outra eram descobertos, teriam que retomar dívidas antigas, problemas passados. Surgiram retiros para neo-cidadãos que não queriam revelar suas identidades antigas. Países de primeiro mundo passaram a fundar pesquisas sobre sistemas de identificação através de mapeamento cerebral. Todas as crianças, ao completar três anos, deveriam passar por exames psicológicos regulares.
Demorou 3 gerações para que o mundo fosse povoado inteiramente por quem estaria vivendo sua segunda vida, no mínimo. As pessoas valorizavam experiências novas, não se apagavam a carreiras duradouras, ao contrário do que se imaginava por especialistas no começo do século. A pausa de 3 anos na vida, após a morte, serviria como um descanso, e quase ninguém continuava exatamente onde parou. O policiamento se tornou absurdo na primeira década, para combater o aumento dos índices de criminalidade, uma vez que cada vez menos indivíduos se preocupavam com as consequências de atos perigosos. Mas depois de trinta anos de reeducação social, o crime se normalizou. A desigualdade social tinha se tornado problema do passado, agora existia a consciência de que você morreria e poderia renascer em qualquer lugar do mundo. Seus três primeiros anos seriam ditados pela família que escolhesse ter um filho, e a natalidade era estimulada com programas do governo e entidades privadas que buscavam criar bancos de dados de quem nascia e morria, para vender a informação futuramente.
A vida se tornou reciclável e, ao contrário do que muitos imaginavam, continuavam existindo vários e vários tipos de lixo.