– O que você faria se uma onda gigante surgisse agora?
– Eu acho que nada. Não daria tempo de fazer muita coisa até ela chegar aqui. Mesmo que tentasse pegar o carro e fugir, centenas teriam a mesma ideia e a estrada estaria congestionada. Talvez me abrigar em algum prédio mais alto, mas não sei se me deixariam entrar. O pânico muda as pessoas.
– Não, não. Você está pensando em um nível acima. Tudo bem, não conseguiríamos fugir, mas ainda poderíamos fazer algo. Pensar em algo. No que pensaria? Em quem? Esperaria sentado?
– Ah, então eu…
– Eu correria para a onda. Mas não para enfrentá-la ou essas merdas heroicas. Só para virar em sua direção, no último momento, e fazer um movimento com as mãos igual aos jogos de luta. Humilharia qualquer criança que tentou controlar o mar, e ainda te daria um belo caldo.
– Porque espero uma resposta conexa de você? Bem, não sei dizer em quem iria pensar. Talvez em todo mundo que já convivi. Todo mundo que amei. Dizem que nos últimos momentos conscientes todos os seus amores estão ao seu lado, os bons e ruins. Mas acho que morreria de pé. Ou talvez agora que revelou seu plano, esperaria o seu movimento e me jogaria como alguém que foi atingido.
– Sabe quando uma estrela morre? Que ela explode e tudo o mais?
– Sim.
– Sabe que tem várias intensidades que isso pode acontecer? E que a maior delas, uma hipernova, acaba enviando radiação por um raio absurdo, destruindo ou alterando atmosferas e tal? Tem uma na nossa galáxia. Ou tinha, vai saber. A luz que vemos tem sete mil e quinhentos anos de atraso, ou algo que o valha. Existe uma chance dessa estrela ter explodido sete mil e quinhentos anos atrás, e sua luz tomar conta do céu hoje mesmo. Quer dizer, não sei com quanto tempo eles tem a capacidade de prever, mas gosto de pensar que não conseguem. Então a qualquer momento pode surgir uma luz mais brilhante que a lua, e mudar a forma como vemos o céu. Não que isso importe hoje em dia mas, pra mim, seria o maior acontecimento da história.
– O que me causa maior admiração é justamente a aleatoriedade disso. Nem tanto o evento, teríamos duas luas, foda-se. Mas se acontecesse justamente hoje, aqui, enquanto estamos sentados nessa porra de praia bebendo mais do que podemos pagar. Podemos até mesmo ser os primeiros a ver essa merda. Milhares de astrônomos sonharam em presenciar eventos históricos assim, e quem viu antes foram dois babacas sentados, pensando se pedem comida ou não, enquanto terminam os copos.
– Queria ter um sonho assim. Na verdade, imagine a situação: seu sonho é justamente esse, ver o surgimento de uma hipernova. Você sabe que a chance disso acontecer é minúscula, e não tem nada que possa fazer para aumentar a probabilidade. Não é como se o sonho fosse uma casa própria, ou uma piscina de gelatina. É algo que independe totalmente do que você, ou qualquer pessoa, faça. Então você vive basicamente para prolongar a sua vida, e aumentar o período de tempo que permanece aqui. Partindo do princípio que não existe vida após a morte, é o melhor que pode fazer. Seu sonho se torna viver mais. E viver mais é equivalente a viver melhor, com mais qualidade, e assim vai. Deve simplificar um pouco as coisas, mesmo o objetivo final sendo tão distante.
– Realmente. Melhor do que os nosso sonhos. Ou o meu pelo menos, nem quero saber com o que você sonha.
– Sonho os sonhos de outra pessoa, claro. Sonho os sonhos de um sujeito que um dia imaginou essa vida de trabalho, conquistas e consumo, seguidos de realização por tê-los alcançado. Não temos como sonhar nossos próprios sonhos. Somos obrigados a sonhar todos o mesmo cenário, onde temos estabilidade financeira, filhos felizes, famílias orgulhosas, reconhecimento. Não faço a menor ideia do que seria meu sonho se agora alguém surgisse e dissesse: “Agora você não tem mais correntes, faça o que sempre quis”. Sei lá o que eu sempre quis, não podemos pensar nisso sem antes pensar que precisamos pagar alguma coisa, ou amenizar certa situação que presenciamos e foi desconfortável. Se por acaso ganhasse um bom montante de dinheiro, boa parte iria para quem me criou, por culpa. Somos obrigados a pagar quem nos pôs nessa droga toda.
– Eu queria uma pequena embarcação. Queria pescar, vender o que consegui pra um senhor gordinho, assar o restante, porque fritar faz muita bagunça. Invejo essas profissões mais simples, sem todo o contato e estresse modernos. Queria fazer algo mecânico, que não tivesse muita novidade, não exigisse acessarmos a parte do cérebro que lida com conflitos. Cheguei, fiz o que sabia, comi algo requentado, batatas eu espero, e fui para casa assistir qualquer coisa sem prestar atenção.
– E se saíssemos correndo agora?
– Do nada, assim?
– Claro. Não vamos nem combinar a direção. Pense em uma, eu penso na minha. Se coincidir, ótimo. Se não, até o próximo dia.
– E a conta?
– Pode contar, se quiser!
– Você entendeu…
– Até demais, esse é o problema.
– Você é o maior imbecil da região. Um, dois…

Cirurgia
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