Convulsão

Convulsão

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Decidi virar escritor pela manhã. Não consegui escrever nada, o que só confirmava que tinha conseguido realmente virar um escritor. A noite bateram na porta. Eram dois oficiais com fardas pretas e expressão neutra, claramente acostumados com o que faziam, dizendo pra mim fazer uma mala pequena, com duas ou três mudas de roupa, objetos de higiene pessoal e, caso existisse, canetas e/ou lápis preferidos.
Foi uma viagem longa na traseira de um caminhão, com outras oito pessoas, todos escritores. A maioria já velho e cansado, uma mulher da minha idade abraçada a um caderno, e um menino que não parava de rabiscar as paredes.
Justo quando alguns quebraram o silêncio e tentavam fazer piadinhas, mais para eles mesmo do que para o grupo, o caminhão parou. Abriram a porta e tudo que podíamos ver era a neve. Tinham 3 deles, o do meio era de patente maior, pelo chapéu e as insígnias. Apontou para dois velhos e eles desceram, tentando evitar olhar nos olhos do oficial. O homem leu alguns trechos que num primeiro momento não faziam sentido, mas depois entendi. Leu pedaços de histórias escritas pelos velhos, um era sobre esse tal de Dezenove e seus problemas pessoais exageradamente descritos pelo autor.
O outro era uma fábula meio monótona sobre uma girafa e um grilo, que nem sequer tinha muita moral no fim.
Depois de acabar de ler, o oficial puxou uma pistola pequena do coldre e atirou uma vez em cada homem. Tinha muita experiência naquilo, foi rápido e certeiro. Os outros soldados arrastaram os corpos de modo que não atrapalhassem a estrada e fecharam as portas do caminhão. A mulher chorava baixinho, o menino continuava a rabiscar e os outros sujeitos conversavam nervosos.

Descemos em um campo de concentração, ou o que parecia ser um, com cercas de arame e casinhas de madeira.
Cada pessoa tinha sua casa, muito confortável por sinal, mas solitária. Ninguém podia sair dela, era uma prisão. Tudo que víamos das janelas era a neve caindo e amontoando. Às vezes alguém com roupas grandes vinha e espalhava ela, mas nunca parava de nevar.
Tudo que tínhamos eram cobertores, mudas de roupa, alguns talheres e muitos papéis e todo tipo de caneta e lápis. Um aviso na parede listava algumas regras básicas, como a intolerância a surtos agressivos e/ou barulhentos, o extravio demasiado dos materiais disponíveis, e a excessiva falta de organização e cuidados com a higiene pessoal básica.
Outra listava algumas informações a respeito do passar do tempo no campo. Em 1 ano, se produzíssemos pelo menos 1 página por semana, tínhamos direito a uma máquina de escrever, por exemplo.

Depois de cinco anos escrevendo regularmente e com bom comportamento, passei a ter acesso a livros, desde que não plagiasse nenhuma das idéias. Lia de tudo, até cheguei a aprender línguas novas, lendo guias e “aprenda você mesmo”.
Depois de oito anos, me deram música. Primeiro só alguns discos, depois um acervo completo de música clássica e erudita. Um ano além, rock e blues.
Depois de dez anos ganhei acesso a jornais mensais. Doze anos a semanais. E quinze a diários.

Passei a entender o sentido daquilo tudo, a perder a vontade de sair. Ali eu estava seguro do mundo, tinha sido abençoado, e podia colaborar para a cultura sem me queimar com as pessoas.

O grande problema, é que quando você não quer mais sair, eles vão te mandar embora. E você vai escrever sobre um sujeito chamado Dezenove, e exagerar na descrição dos problemas pessoais dele. Depois vai fazer uma fábula, afinal quem mais fácil de agradar do que as crianças. Ninguém entende a moral da girafa e do grilo, e batem na porta de novo. Te levam no mesmo caminhão, e dão um tiro no peito no meio da estrada.
Faz frio aqui, tanto tempo que não sentia frio.

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