Talvez o tempo esteja acabando mesmo, como profetizou um homem de chapéu e botas rasgadas há muitas luas atrás. Minha mãos estão moles, mornas, derretendo. Tudo está derretendo. A vela que regia meu destino, e que parecia tão grande a segundos atrás, escorre pra fora do pires. Se pudesse mostrar ao mundo o que vejo, as cores que descobri escondidas atrás do papel de parede do quarto, os sons que saem de caixas de música quando tocamos elas ao contrário e de ponta-cabeça.
Parecia que o menino usava um grande par de óculos coloridos e desajeitados, mas só parecia. Tinha lentes para qualquer ocasião, lentes para a sala de aula, lentes para andar na rua, lentes para correr na chuva, conversar com desconhecidos, falar ao telefone. Cada uma variando em espessura, cor e a quantidade de rachaduras. Só não usava óculos para conversas com seus poucos amigos, aqueles que vemos quase que telepaticamente, de formas muito mais profundas do que as limitadas pela derme e epiderme. Nenhuma das lentes era adaptada para olhar em espelhos. Todas embaçavam e distorciam. Por toda sua vida procurou lentes novas, mas não conseguia se acostumar com a maioria delas.
Preciso de quantidades massivas de analgésicos. Preciso ter uma overdose. Preciso de experiências quase-morte. Preciso de um novo urso de pelúcia e balas de goma. Preciso de plantas carnívoras. Um filho, uma herança, um legado. Preciso sentir o cheiro de enxofre que sai das barbas de demônios. Preciso viver na selva por 12 dias. Preciso de êxtases sexuais a cada terço de dia. Preciso de um mapa, sem o X, sem o caminho, um mapa em branco, somente o papel, a bússola e a vontade de cavar.