Dependência

Dependência

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Te desafio a viver em um mundo sem espelhos. Sem reflexos. Sem retornos, opiniões… sem palavras de apoio, críticas, expectativas.

Te desafio a ouvir somente sua própria palavra. A acordar em um quarto de plástico, um mundo opaco e feito somente dos milhares tons de cinza existentes. Você deve aceitar sua consciência. Refletir sobre suas próprias decisões. Derivar caminhos das suas escolhas. Deve ser você mesmo.

Te dou alguns minutos para perceber que não faz parte daquele lugar. Você, sozinho, não faz parte do seu próprio silêncio. Arrisco a dizer que é o maior intruso de si mesmo. É tão fácil fingir que gosta de usar vermelho, que entende a política de direita, que consegue ser desapegado de coisas imbecis. É tão simples abraçar gatos quando ontem mesmo você odiava eles. Mentir para seu grilo falante é uma coisa.

Meu segundo desafio é para ir até o espelho do banheiro e olhar nos seus olhos. Pergunte se você está bem. Vamos, pergunte. Não vale fugir com o olhar. Ou apoiar a testa no vidro.

Pergunte se você é feliz. Pergunte se você é ao menos você mesmo. Se consegue engolir a bolota de proteínas que se tornou a colherada de comida que forçou na boca. Elas pareciam tão fáceis de digerir, não pareciam? Pareciam uma canja de galinha, melhor do que qualquer remédio. Deixe-me lembrá-lo que vômito parece canja de galinha. E mesmo assim, é fácil de engolir, para quem consegue focar no que interessa. Mas você não. Você adora desenhar no espelho embaçado. Escrever iniciais, traços do que pode vir a ser praticamente qualquer coisa. Uma casa, uma bicicleta, um pinguim, um alguém. Na neblina até conversar consigo mesmo é mais simples, você se torna seu amigo, a garrafa na sua mão se torna sua amiga, o poste de luz é o melhor guarda-chuva que já inventaram, neste ou no outro lado do mundo.

Você, você, você, você.

Desenho você mesmo em um papel. Com giz de cera, obrigatoriamente. Não, não use caneta. Nem lápis, seus pais não gostariam que o desenho fosse ausente de cor. Suas músicas já são ausentes de cor. Seu almoço é grafite puro, e carvão, e diamantes, o que dá no mesmo. O desenho vai ser tudo, menos o seu reflexo. Se não as cores, a expressão. Se não os olhos, o sorriso. Se não o sol, a cabeça baixa. Se não a casa do cachorro, sua raison d’être.


Conte até dez, e termine de se maquiar. Vá à festa. Dance. Se arrependa. O espelho é uma ferramenta, não olhe para seus olhos lacrimejados. Você não está chorando, apenas bateu o pé na mesa. estava escuro. A maquiagem borrou. O quebra-cabeças não tem peças faltando… no máximo, algumas sobressalentes. Amanhã, escove os dentes e não faça contato visual com a camada de prata. Cuspa na pia, três vezes para dar sorte.

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