Alguns dias são escuros, apesar do sol lá fora e do canto dos pássaros, ficam escuros pelos olhares raivosos, o cheiro de bebida, os ematomas.
Quando ela se escondeu no guarda-roupa o sol ainda tentava alegrar quem vivia longe da casa número 48.
Dentro do guarda-roupa, em toda aquela escuridão e cheiro de sujeira, ela se encolhia, primeiro chorava baixinho e momentos depois se divertia com bonecos feitos de meia.
O escuro sabe ser aconchegante se a luz fizer os olhos doerem.
E ali ela ficou, e adormeceu, para que quando ele voltasse não a encontrasse na cama, e talvez fosse embora.
Acordou com feixes claros entrando tímidos pelas frestas das portas do guarda-roupa. Quando abriu levou um susto, estava no meio do oceano. Com medo se encostou no fundo do guarda-roupa, que virou pra trás. Ela levantou e percebeu que tinha um barco. Um barco-guarda-roupa.
A água era fria, perfeita para pescar com as mangas de lã que rasgou. Que peixe não iria querer isso?
No fim do dia estava com sede, e a água parecia sal na boca. Ao longe viu uma máquina dessas de vender latinhas, e tratou de procurar moedas perdidas nos bolsos das roupas. Quando encontrou foi pra perto, e demorou a se decidir se preferia uva ou laranja.
Escolheu limão, e só quando apertou o botão da máquina que percebeu, a parte onde a latinha saía estava pra baixo da água.
Já estava voltando desanimada pro seu barco-guarda-roupa quando ouviu um barulho. Bolhas começaram a sair debaixo da máquina, estourando com aquele chiado de refrigerante.
E assim, sem mais nem menos, o mar começou a ficar verde. Saindo da máquina ondas e ondas de água verde com espuma e cheiro de limão tomavam conta de tudo, até se perderem de vista no horizonte.
Ela bebeu até ficar cheia, e dormiu cansada.