flow

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De uns minutos pra cá, mais precisamente no momento exato que o verão deixou de ser verão e passou a ser outono, percebi que estou vivendo em uma redoma de vidro sujo.
Tudo é embaçado, como aquela névoa sempre presente em lagos pela manhã, e só vejo as cores dessaturadas, quase mortas, restando um vislumbre do que eram.

Ouço tudo em ecos distantes, já na terceira ou quarta ecoada. E sinto os vultos passando, rindo e tendo conversas banais sobre o mercado da esquina, problemas no trabalho, e amores não resolvidos.

Às vezes os vultos param na minha frente e chamam, eu olhos pra eles com dificuldade, e sinto pegarem na minha mão, me guiando pela névoa, primeiro devagar, depois ganhando velocidade, até eu desmaiar de medo, medo de bater na parede de vidro, medo de talvez quebrar ela.

Eu acordo e não lembro de nada, aos poucos uns fragmentos de memória voltam, lembro de sorrisos ao ouvir gargalhadas, lembro de assovios ao ouvir músicas. Mas até as recordações são borradas, como sonhos, ou ecos distantes, uma chama de vela vista num reflexo de algum metal polido.

Vejo um vulto com uma lanterna roxa, brilhando bem fraquinho. Tento seguir tateando a névoa, correndo decidido, sem medo de encontrar a parede de vidro. Ela existia, o final da jornada, o fim da redoma. Bato nela e caio no chão. O vulto está lá fora, todos eles estão, andando e conversando coisas banais.

Ele escreve com o dedo na poeira do vidro, se quero tentar quebrá-lo.
Digo que ainda não sei, gosto de acordar sem lembrar de nada, talvez amanhã.

E acordo sem lembrar do vulto, ou do roxo, ou da parede. Eram sonhos ecoando por ai, talvez sonhos de outros alguéns, talvez eu só seja um apanhador de sonhos, preso no mundo dos vultos e da névoa, encarregado de espantar os pesadelos pra fora e deixar a passagem livre.

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