Conheci ele quando parei para descansar num banco que ficava na frente do asilo. Ele estava pintando uma maçã vermelha, confesso que sempre quis pintar, ou escrever, ou cantar, mas não sei fazer nenhum dos três muito bem.
Ele viu que eu estava carregando compras e deu um sorriso, disse pra me sentar que ele logo acabaria, e eu poderia trocar a pintura por algo que tinha comprado, se quisesse é claro.
Perguntei se ele estava visitando alguém do asilo, por estar sentado ali. Disse que não, só gostava do lugar.
Acabou a maçã, e tinha ficado muito bonita, na verdade era uma das melhores pinturas que já vi, apesar de ser pequena e simples, só uma maçã, sem fundo nem nada. comecei a vasculhar minha sacola e tirei uma pá pequena, comprei mais porque ela era simpática do que pela utilidade mesmo. Mas seria pra jardinagem. É meio terapêutico cuidar de plantas, pelo menos pra mim é.
Ele pareceu gostar mesmo da pá, e me deu a tela do jeito que estava, sem moldura, mas nem ligava. Entreguei a pá e peguei a tela, fui guardar quando reparei na mã que ele usou como inspiração. Estava morta, seca, parecia estar ali fazia dias, largada no sol.
Ele viu que notei a maçã e riu, perguntou se eu gostaria de saber um segredo. Falei que sim, e o pintor me contou sua história.
Tudo que ele pintava morria, tudo mesmo, frutas, animais, pessoas, até objetos de ferros e plástico se desgastavam ou ficavam secos e frágeis. Contou como foi descobrir isso, ainda no primário quando sua professora viu que ele fez um cachorro bem feito demais para a idade, e pediu pra desenhar “vejamos, desenha quem está sentada ao seu lado”.
A menina ficou imóvel rindo, e os coleguinhas falando pra ela não se mexer. Quando acabou a pintura e assinou, ela ficou com olhos vidrados e começou a fazer um grunhido de velha, cada vez mais rouca, até parar de vez. Ficou ali, seca, murcha, como se alguém roubasse toda a água do corpo. O pior é que não roubou, isso durou alguns segundos, ai ela começou a sangrar por todos os poros e orifícios, aquele corpo seco não segurava mais sangue.
Contou que passou anos pensando se tinha sido mesmo ele quem matou a menina, e mesmo depois de testar com plantas, tinha que confirmar com algo mais concreto. Pintou o gato do seu amigo, que morreu duro com as patas esticadas.
O periquito da Sra. que tinha acabado de se mudar para a casa da frente, que morreu como todo passarinho morre.
Mas mesmo assim tinha que fazer alguma coisa pra acabar com a culpa, ou confirmar ela. Talvez a menina tivesse uma doença rara e coincidiu com o momento de nervosismo, podia ser isso não podia?
Mas ele não tinha coragem de pintar outra pessoa, fosse lá quem fosse. Até procurou assistir programas policiais na tv pra ver se pintava algum sujeito procurado que não merecesse estar vivo, mas desistiu.
Com o tempo passando foi engolindo a coisa toda, parou de pintar coisas vivas.
Perdeu os pais bem cedo, na adolescência, primeira a mãe e dois anos depois o pai. tinham envelhecido bem rápido, e os médicos falaram que era o estilo de vida.
Foi morar com seus avós, que morreram alguns meses depois que ele chegou.
Aqui eu já comecei a deduzir qual era o problema. Ele fazia as pessoas envelhecerem, sugava sua vida ou algo do gênero. Qualquer pessoa que estivesse perto, embora fosse potencialmente mais perigoso se ele encostasse ou passasse mais tempo do lado.
Passou a viver excluído e longe de todo mundo, roubando pra viver, e fazendo alguns moradores de rua perderem o fôlego só de deitarem perto dele.
Perguntei se eu não ia cair morto a qualquer momento, mas falei brincando. Ele riu e disse que não, que agora tinha atingido um certo equilíbrio, ele próprio não envelhecia mais, mas a área de alcance da coisa era maior, ali ele sugava a vida de todos os velhos no asilo igualmente, o que não seria grande coisa pegando pessoa por pessoa. Disse que estava no asilo porque eles seriam os que menos sentiam falta dos dias de vida que seriam retirados, e isso ajudava no peso da consciência.
Claro que perguntei se ele pensava em suicídio. Disse que sim, o tempo todo, mas não queria morrer, e só.
Levantou e levantei junto, me deu um abraço e falou que só por esse eu tinha perdido um mês de vida mais ou menos. Agradeceu pela pá e disse que ia tentar plantar uma árvore, se ela não secasse durante o processo.
Ele era o Dorian Gray! hahahaGosto do seu estilo. Voltarei sempre.Obrigada por comentar no Barbatanas.PS: Comentários bacanas nunca são inúteis. Nem esse aqui, que ficou meio bocó.;)
uma bela imagem do medo do eterno e do egoísmo piedoso,ou pelo menos me pareceu isso.