Cada dia as faces das pessoas mudam. Não estou ficando maluco, elas mudam mesmo, trocam de feições ou coisa que o valha. Passo na padaria e posso jurar que aquele padeiro é o 5º diferente que vejo em uma semana. Pelo menos o pão continua o mesmo. Pelo menos minha cara continua a mesma.
Porque me preocupar, certo? Desde que sorria depois de responder como está minha tarde, tudo corre bem. E no meio desse pequeno problema não consigo decidir se quero ou não ter uma filha. Se quero ter uma pequena princesa mimada correndo pelos corredores e ouvindo gritos dos vizinhos mal humorados. Não sei se quero alguém que dependa de mim. E se a face dela mudar pra mim? E se a minha mudar pra ela?
Do que vale pensar nisso afinal, estou tão distante de ter uma filha quanto o México está de Paris. E isso deve ser longe pra burro. Mas confesso que me confortaria o cenário onde eu saberia a resposta. Talvez eu imagine esse cenário. Talvez crie uma maquete com ele, sempre gostei de maquetes. As minhas eram as melhores, com toda aquela massa de modelar e papel brilhante.
No caminho da papelaria aposto comigo mesmo que a atendente será ruiva dessa vez. Isso mesmo, ruiva com olhos castanhos, pequenos. E uma espinha. Não, um piercing… Perdi a aposta. Ela tinha uma espinha, sabia que seria uma espinha.
Minha maquete mostra eu mesmo sentado na mesa de jantar. É generoso chamar ela assim: “Mesa de Jantar”. É como me chamar de Doutor Esquisito ao invés do corriqueiro Idiota Esquisito. E ali tem tudo, o balcão da cozinha com a marca de panela queimada, cigarros espalhados que espero de todo o coração que sequem e não tenham gosto de urina. Minha caixa de papel reciclado que nunca reciclei, porque sempre que lembro os papeis estão úmidos e com uma espécie de bolor estranho por cima. O frigobar, com escritas feitas a caneta por toda a volta me convencendo que ele é uma geladeira, e não uma droga de um frigobar. GELADEIRA, ISTO É UMA GELADEIRA SEU IMBECIL. O antigo aquário do meu falecido companheiro, aquele que jurei nunca mais pronunciar o nome. E por último mas não menos importante, a certeza. Ali está ela, em cima da mesa, não muito protegida de uma eventual derramada do copo de leite, mas tudo bem. A certeza se quero ou não ter uma filha. Com essa certeza posso sentir a satisfação e alívio de mim mesmo sentado em sua bunda gorda de massa de modelar. O problema é que reparando bem, estou com a cara diferente.
um dos melhores que você já escreveu aqui