radiance.

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Os dois eram cegos e surdos, um rapaz e uma garota, jovens, cresceram em celas escuras e sem contato com ninguém, alimentados regularmente por pessoas que eles jamais conheceriam.
Já com certa idade foram trancados em um abrigo nuclear subterrâneo, em compartimentos diferentes. Os resultados eram esperados, um dia, procurando por comida eles se tocaram, e soltaram gritos desesperados que nenhum deles ouvia, socaram o ar, a si mesmos, o outro, e correram, tropeçando e batendo nas paredes.

Ele ficou sentado por 2 dias inteiros, tremendo.
Ela ficou sentada por 1 dia inteiro, no segundo tinha desistido da vida e levantou procurar o que quer que fosse que tinha batido nela.
No terceiro dia ela o achou, encostaram os pés e ele gritou de novo, se debateu e, sem querer, derrubou ela de cabeça no chão.
Ele chorou por horas e horas, não por tristeza nem medo, mas por não saber coisa alguma do que estava acontecendo. Não sabia o conceito de morte ou matar, não conhecia laços com ninguém.
Mas o pé dela era quente, e ele conhecia o frio.

Logo que ela acordou sentiu que estava do lado dele, e o abraçou.

E assim eles cresceram, sem se entender ou ver, servindo de cobertor um ao outro. Dividindo comida e cócegas.

Alguns dias depois ela acordou e conseguia enxergar. E como aquilo era fantástico, ver tudo. Mas junto com a visão veio o medo, o receio. Agora tinha insônia, e não entrava mais em lugares escuros e chorava baixinho cada vez que via uma sombra se mover.

Alguns dias depois ele acordou e conseguia enxergar. E como aquilo era fantástico, ver tudo. Queria olhar as coisas de perto, cores, formatos, sombras. Ah as sombras, aprendeu logo a fazer elas com a luz, e como isso era maravilhoso.

Os dois pensaram a mesma coisa, “posso ver, mas ele/ela não pode”.
Os dois sentiram pena um do outro, e fingiam não poder enxergar. Quando trocavam olhares viravam o rosto ou fixavam os olhos em um ponto fixos, como fizerma a vida toda sem visão.
Tinham medo que o outro descobrisse que podiam ver, e se sentirem mal ou fosse lá o que fosse.

Logo ele achou um violino, e começou a produzir sons inúteis.
Ela encontrou vídeos de orquestras e partituras.

Ninguém sabe ao certo, mas eles descobriram que o outro podia ver sem demonstrar surpresa ou qualquer coisa. Só descobriram e viviam normalmente.

Ele viu que ela gostava dos videos de orquestras, e deu a ela o violino. Ela imitava os gestos e sorria.

Um dia ela acordou e podia ouvir, e nossa como era fantástico, ouvir tudo.
E chorou ao entender os sons dos videos, foi logo tocar o violino, e era o dia mais feliz da sua vida.

Com o tempo ela aprendeu a tocar, e tocava muito bem. Ele passava o tempo todo olhando os movimentos e rindo quando ela fazia uma cara feia ao errar a entrada do segundo ato de uma partitura qualquer.
A música mudava o lugar, mas somente para quem ouvia. Ela enxergava animais correndo, e flores, e avelãs espalhadas pelo chão.
Sentia aromas diferentes, e podia jurar que via sombras de outras pessoas passando pelas portas e janelas, mas se parasse a música para ver elas sumiam e tudo voltava ao cinza de sempre.

As melodias dela mudaram, eram mais maduras e tristes, sozinhas.

Uma noite ela acordou, e ficou tocando, músicas rápidas e nervosas, que produziam cores escuras e sombras violentas.
Ela tinha raiva, raiva que ele não ouvia sua música, raiva que era sozinha com algo tão belo.

Pegou uma tesoura e furou os tímpanos, depois os olhos.

Ele acordou sem música, pela primeira vez em anos, sem música. Correu procurar o violino e sua mestra, e encontrou ela caída com sangue no rosto e uma tesoura nas mãos.
Ele ouvia, ouvia ela todos os dias. Mas nunca demonstrou que podia ouvir, queria que ela se sentisse especial, como ele tinha se sentido ao ser o único a ver.
Mas agora a música acabou, sem mais cores e animais e sombras, as belas sombras.

A tesoura cortou o ar de novo, dessa vez no peito dela, várias e várias vezes. O sangue era tão lindo, brilhante, e ele voltou a ficar em silêncio, e sozinho, como no início.

Ele e as sombras.

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