Quero adoecer. Não daquele jeito que você deseja uma dor de barriga em dias de escola, ou antes da montanha russa. Doente mesmo, de cama, jorrando fluidos por qualquer orifício e descobrindo músculos com a dor. Quero sentir o cheiro da carne apodrecendo, quero ver os corvos fazendo círculos de ansiedade acima de mim. Quero jogar uma partida com a morte. Tossindo sem cobrir a boca, com poucas cobertas, roupas esfarrapadas e só um sapato. Quero chegar ao ponto onde me arrependa do que pedi, quero ficar mal, muito mal mesmo, e só conseguir pensar nas dores, nos corvos, na fome, no fedor.
Então vou acordar melhor, com cicatrizes e hematomas, mas melhor. As feridas descascando, mas melhor. Para a decepção dos corvos vou levantar e beber um gole da mesma água suja e doente que bebi, e com isso a morte baixa suas cartas e vai embora, sempre com um sorriso no canto da boca.
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Dois amigos decidem cortar caminho dessa dimensão pra próxima, mas não conseguem chegar num consenso sobre qual deles puxa o gatilho antes. O evento é adiado até que eles arrumem a segunda arma, mais barata que a primeira. O local é no quarto de um deles mesmo, quanto antes encontrassem os corpos melhor, menos bagunça e choque (eu acho). No fim da contagem até 7 eles puxariam o gatilho. Um deles atirou, o outro hesitou por alguns milésimos, e quando ouviu o barulho começou a chorar. Ele não estava arrependido, estava orgulhoso de seu amigo, ele sim era corajoso de fazer antes, agora não tinha mais volta. Se não enfiasse aquela bala na cabeça uma vida inteira de sessões de terapia, processos e reabilitação o esperavam. Só de imaginar sua família querendo entender os motivos, e sua total falta de vontade de explicar isso pra eles, já desanimava. Pensar naqueles que surgiriam depois querendo consolar e se fazer presentes, mais pra si mesmos do que pro adolescente estúpido deitado na cama com balões em volta e cartões de “Melhoras!”. Pôs a arma na boca de novo e abriu um sorriso. Então ouviu um gemido no chão. Seu amigo ainda estava vivo, com os olhos vidrados, um furo enorme saindo do lado da cabeça, a boca escancarada, fazendo aqueles barulhos horríveis como se estivesse com uma noz no meio da garganta. Estendeu a mão do chão, como se pedisse ajuda. O imbecil atirou no ângulo errado e não morreu na hora, morreria em questão de minutos com toda certeza. Mas seus olhos estavam ali, secos, quando se imagina que estariam lacrimejando. Não, estavam secos, e isso era horrível. Já podia ouviu os passos subindo as escadas. Já podia ver a cena quando abrissem a porta, ele com uma arma na mão, seu amigo deitado naquela posição ridícula com a cabeça estourada. Tirou a arma da boca e acabou com o sofrimento daquele que instantes antes parecia ser seu herói. Eles combinaram que só teriam uma bala cada, parecia que o drama disso era mais divertido.