Éramos em quatro. Os meninos do bairro debaixo, como alguns senhores sentados em cadeiras de balanço nas suas varandas diziam. Todo o tempo que aquela época recém saída da infância proporcionava nós usávamos das maneiras mais idiotas que você pode imaginar. Aquelas brincadeiras que todo mundo e lembra, nunca fizemos. Quebrar o braço ou uma costela, quase se afogar ou incendiar a casa, nada disso. Sentávamos em parques pensando como as coisas ali podiam mudar. ali no parque, não na vida, isso seria filosófico demais pra nossas cabeças moles. Tinta descascando e aquele balanço quebrado, bolávamos teorias de todos os tipos e exageros para pensar como aquilo aconteceu, qual a história. Porque a grama no lado leste era mais rala? E coisas do gênero, completamente sem sentido e desnecessárias. Sabíamos que a noite, todos ficavam olhando pelas janelas as pessoas passando na rua e imaginando, qual a história deles. Onde vão? Onde aquele sujeito com flores na mão vai, quem vai recebê-las, é um pedido de desculpas ou uma surpresa? Porque a senhora estava chorando com compras na mão? Todos têm histórias.
E os quatro meninos um dia, nessas andadas pelo parque que sempre acabavam indo um pouco adentro da floresta do assovio, tiveram sua maior história, aquela que todos temos e nunca mais falamos sobre ela, nunca mesmo, só quando estamos bêbados demais e quem ouve imagina logo que é baboseira de quem bebeu demais.
Estávamos deitados olhando pra cima, esperando o céu ficar laranja porque assim dava pra saber que 20 minutos de caminhada depois nossas mães estariam reclamando das costas sujas, camisas faltando botões e que sempre atrasamos para o jantar.
Steve levantou de repente, dizendo ter ouvido alguém falando. Ele tinha a mania de querer ser valentão quando estava perto da gente, mas todos sabiam que apanhava do padrasto em casa e nunca disse um palavrão sequer para o velho maldito. Passaram uns 5 minutos até ele chamar a gente, não sei o que aconteceu nesse meio tempo e não sei se quero saber algum dia, mas quando chegamos lá ele estava branco como um fantasma, apontando para um rádio velho no chão. Disse que o rádio tinha falado sobre seu pai, com o nome do meio e tudo, coisa que mesmo entre a gente, só eu sabia. Mark, aquele amigo que sempre faz piadas com tudo, deu tapinhas nas costas de Steve e falou que ele deveria estar imaginando coisas, que tinha ficado biruta como o velho senhor Stanson, e começou a rir, ele era assim, fazia piadas mais para si mesmo do que para ser engraçado. Riu até sair aquela voz do rádio, uma voz gutural e falha, como se a transmissão estivesse ruim.
– “Naquela tarde você não conseguiu rir não é Mark? Não conseguiu rir do seu irmão roxo na banheira. Era pra você estar cuidando dele Mark, mas a revista em quadrinhos nova era mais importante não é mesmo, tão importante que nem mesmo quando as risadas de seu irmãozinho pararam você foi ver o que tinha acontecido. E hoje você ri o tempo todo, ri porque seu irmão não pode mais rir.”
Mark cerrou os punhos e perguntou sem tirar a cara do rádio, quem era o idiota que tinha feito aquilo. Não tinha graça, todos tinham problemas ali e isso tinha ido longe demais. Eu sabia que ninguém dali tinha capacidade pra uma brincadeira de mal gosto dessas, mas esperei alguém falar primeiro, mas quem falou foi a voz do rádio de novo.
– “Vamo John, fale, fale como sempre faz, dê a palavra final. Você se considera o líder não é mesmo? Se acha o mais esperto, sempre guardando respostas dentro de si e pensando em como seus amigos são bestas. Você é igualzinho seu pai, não importa o quanto diga que o odeia, é igualzinho. Tem medo de ser um velho inválido como ele não é? Que precisa de ajuda até para cagar nas calças e grita pela casa toda para lhe trocarem as fraudas. A doença é genética John, pegou seu pai e um dia vai pegar você.”
Não consegui fazer nada a não ser rir, rir de medo e nervosismo. Perguntei que história era aquela, tentei disfarçar, mas todos estavam olhando pra mim. Lars perguntou se era verdade, e Steve logo disse que era óbvio que era verdade, a coisa tinha acertado tudo sobre seu pai e pela cara que o Mark tinha feito também acertou sobre ele. Não sabia o que dizer, Lars sempre foi o mais frágil, aquele que defendíamos no colégio dos meninos maiores e deixávamos ganhar no poker. Os olhos dele estavam cheios de lágrimas agora, e quando pensei que ele ia desabar de vez a voz tornou a falar.
– “Chore seu maricas, chore como faz todas as noites depois de orar, sempre depois de orar, senão o bondoso senhor Jesus vai fazer sua mãe te dar palmadas, não é? Ela é boa, é sua mãe, sua mamãezinha, nunca lhe faria mal, mas às vezes tem que te dar uns murros em nome de Jesus, para educar não é, para você ser um menino bom. Mesmo quando ela apaga os cigarros nas suas costas e põe fogo nos brinquedos, é tudo pelo seu bem, ela é sua mãe, louvado seja o Senhor.”
Lars ficou num estado acima do que simples medo, raiva, desespero. Estava horrificado, literalmente, não conseguia nem chorar, parecia que as lágrimas iam explodir seus olhos se não saíssem, mas ele não conseguia.
Steve começou a pedir desculpas sem parar, dizendo que nunca deveria ter ligado o rádio, que era sua culpa, ele sempre estragava tudo. Eu disse que não era nada disso, ninguém tinha culpa, e era melhor desligarmos logo aquela coisa. Lars tomou a frente, o que me faz sentir culpado até hoje, e virou o botão do rádio. Quando o chiado sumiu ele continuou ali abaixado com a mão no rádio. Botei a mão no seu ombro para dar o empurrão que precisávamos para sair dali logo, ele virou a cabeça lentamente e tinha o olhar mais assustador que já vi, mesmo em todos aqueles filmes de terror furtados por debaixo da camisa de Mark que vimos escondidos. Falou palavras que nunca vamos saber o significado, naquela mesma voz gutural mas dessa vez sem o chiado, em alguma língua indígena antiga ou qualquer coisa que o valha. Depois desmaiou. Steve fez questão de carregá-lo até em casa, não largava o amigo por nada, e não deixava ninguém ajudar, mesmo depois de insistirmos muito. Lars acordou pouco antes de chegar na escadinha em frente a sua casa, e sorriu perguntando o que tinha acontecido. Todos forçamos risadas e falamos que ele tinha adormecido no parque, e logo sua mãe chamou.
Nunca mais ninguém falou sobre isso. Logo cada um seguiu seu caminho. Só nos encontrávamos de vez em quando no hospital em que Lars vivia, sua mãe não explicou muito bem, por vergonha ou medo de que pensassem que seu filho estava possuído, mas uma enfermeira disse que Lars acordou um dia gritando e depois não disse mais nenhuma palavra. Acho que ele lembrou daquele dia. Ou, não gosto de pensar muito nisso, o que quer que estivesse naquele rádio ficou com ele.
Steve abriu um posto de gasolina num estado vizinho e da última vez que o vi tinha três filhos, com o quarto a caminho. Parecia feliz.
Mark tinha ficado 2 anos preso por assalto a mão armada, e agora vivia numa pensão cortando a grama dos outros. De todos nós ele era o que mais fazia questão de nunca falar sobre o que aconteceu, dizia que estávamos loucos e éramos jovens demais para pensar direito. Mas nunca deixava de visitar o Lars.
Um dia eu voltei até a floresta assovio, procurando pelo rádio. Demorou um pouco para lembrar do caminho, aquele que fazíamos correndo antigamente, contando quantos troncos caídos tinham. E ali estava ele, aquele maldito rádio, coberto de musgo e sujeira. Não sei explicar como, mas já sabia que ele não ligaria, e isso só me fez temer mais ainda pelo Lars.