Havia um capitão e seu navio de velas grandes. Minto, não era um capitão, era um pirata qualquer, mas que vivia imaginando ser o capitão, pois esse passava a maior parte do tempo deitado na cabine, tragando um cachimbo. O navio ficava ancorado em uma baía não muito agradável, mas calma o suficiente para tirar um cochilo após as refeições. O pirata qualquer sempre pensava em como seriam as águas do além-mar, navegar sem rumo, sem horizontes, na calmaria tranquilizante. Sem alarmes, sem surpresas. Mas as âncoras eram fortes, e não mostravam sinais de desgaste. O navio ficaria ali por um bom tempo.
O problema foi que nosso amigo pirata qualquer passou a sentir-se incomodado pela confusão do porto, todas aquelas pessoas indo e vindo, o barulho interminável, o fedor de quem pedia esmola, os doentes sendo carregados. Toda a tristeza e apatia daquela cidade portuária maldita. Tragédias que de tanto se repetirem acabam se tornando rotina, mesmice e desbotam o vermelho vivo para um rosado sem graça. As âncoras começaram a se desgastar, e o pirata qualquer não via problema nenhum nisso.
Em noites compridas demais ele arrumava amigos, às vezes reais, às vezes surreais. Alguns deles davam conselhos sobre como acelerar o desgaste das âncoras. Outros diziam que seria uma jornada inútil, sem fim, sem propósito, e que ele nunca poderia voltar. Mas pra que diabos ele iria querer voltar? Você conhece uma cidade portuária e conhece todas. Você conhece um morador e conhece todos. Só diferem nos sapatos e na velocidade dos passos, mas sempre tropeçam nos mesmos degraus. Ele podia ver de cima do navio, podia ver todos com clareza e ninguém se salvava. O oceano devia oferecer calma pelo menos.
E nesse misto de sinceridade e revolta que somente a embriaguez proporciona, o pirata qualquer tinha ideias sombrias. Andava por todo o navio, estudando, de olho nas menores rachaduras, nas tábuas soltas, elos de corrente enferrujados… em algum momento ele mesmo soltaria as âncoras.