O problema com noites frias é que se passar muito tempo olhando fixamente pra dentro da tigela de sopa acaba sendo sugado por ela. Vai parar em um mundo que está derretendo. Nada mais é pontiagudo, tudo murchou, réguas são um saco de usar e as facas fazem muita bagunça agora. O ponto positivo é que não dói tanto chutar o pé da mesa.
Quando finalmente consegui encontrar uma escada firme o suficiente para escalar a maldita tigela, descobri que voltei na oitava série. Aula de geografia. Puxei assunto comigo mesmo, mas o outro eu respondeu confuso “porque estou falando com ele? Tem tanta gente na sala e resolvi falar justo com ele”. Não fazemos contato visual pois talvez a realidade entre em colapso ou algo que o valha. Mas compartilhamos o mesmo fone, acho que isso não tem problema. E o meu molhou na sopa.
Faço a melhor amizade que tive em anos, basicamente por que não precisamos perguntar sobre quais sabores pedir quando tomamos sorvete. Ele questiona se já saí da prisão, respondo que prisão, cara, não tem prisão nenhuma. Ele diz: da prisão social em que vivemos. Rimos como se fosse algum tipo de piada. Não é, e vamos embora. Ele vai, pelo menos. Eu não lembro onde moro nessa época e meu orgulho não me deixa perguntar pra mim mesmo da oitava série.
Queria ter um animal de estimação, mas morro de medo de mudar de ideia. Devia existir test-drive de animaizinhos. Não me venha com esse papo moralista, ele fede. Só você suporta o cheiro, como quando peida embaixo das cobertas e sente certa satisfação ao ver que seu intestino consegue produzir tamanho resultado. Ah, o moralismo. Como torcemos pra que ele saia sem fazer barulho.