Somehow

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E eu ganhei um pássaro. Não pergunte que tipo de pessoa da pássaros às outras pessoas, no fundo elas não existem de verdade, só surgem por breves momentos, compram o pássaro (ai eu me pergunto porque elas não surgem já com o pássaro) e dão pra quem quer que seja. Depois somem ao virar uma esquina.

Não estava num dia bom para dar nome ao pássaro. Esses dias são mais comuns do que deveriam pra mim. Dias que não consigo dar nomes as coisas, é meio triste as vezes.

Enfim, lá estava eu e meu pássaro, olhando um para o outro. No próximo momento eu estava dentro da gaiola, do tamanho do pássaro, e ele fora dela, grande como um adulto.
Você não pensa nada nesses momentos, seu cérebro meio que trava, é como andar na rua e ver um palhaço dar um soco numa criança, você trava, meu finado avô que lutou a segunda guerra (ele achava que lutou pelo menos) diria que “você fica embasbacado”.

Depois de uns momentos embasbacado, sentei nos jornais, na parte deles que não estava urinada pelo menos, e fiquei olhando o pássaro. Com certeza a reação dele foi mais intensa que a minha, se debateu pela sala toda, gritando e fazendo voar penas. No começo até que foi engraçado, mas logo ficou deprimente ver ele lá pensado algo como “oh céus, mas que merda é essa”, ou seja lá o que pássaros pensam em momentos assim.
Depois de uns dez ou quinze minutos assim, ele caiu no tapete e ficou por ali, respirando pesado. Vi que tinha machucado sabe-se lá como embaixo da asa e sangrava um pouco.

Pensei “pronto, vou ter um pássaro gigante morto na sala”. Confesso que o fato de estar pequeno e preso na gaiola não me assustou no início.

Quando acordei depois ele já estava morto, duro do jeito que pássaros ficam quando morrem. Senti fome e tentei comer alpiste, o que é a mesma coisa que morder uma espiga de milho crua. Bebi água mas ela tinha um gosto engraçado de canos velhos com pó.

No outro dia acordei e minha gaiola estava em outra sala, muito maior e com um ar vitoriano, com cortinas de seda roxas, vindo desde o teto ate sobrar um pouco no chão, e perdia-se a conta com tantos sofás e poltronas. Um sujeitinho baixo meio careca bateu palmas ao me ver e disse com ar pomposo “finalmente, finalmente”.

Vivi ali por muito tempo, servindo de distração para o filho do sujeitinho, que depois descobri ser algum duque qualquer. O rapaz era interessante, devo admitir, mas logo se tornava tedioso, com perguntas e teorias estúpidas sobre a vida e as pessoas. Falou que quando me viu a primeira vez se decepcionou, a sujeira e eu usando trapos, com jornais velhos fedendo urina de pássaro.
Falei que isso era óbvio, nada mais natural que nos julgarem pela aparência de nossa gaiola.
Ele me dava brinquedinhos estúpidos de madeira, e ensinava etiqueta, mas meu ânimo ia diminuindo a cada dia.

Eu pedia livros a ele, ou um violino pequeno, mas ele dizia que era impossível isso, até poderia ler para mim, ou ir virando as páginas do lado de fora da gaiola, mas que seria muito trabalhoso, e porque raios eu não me contentava com meus brinquedos.

Porque nunca nos contentamos com nossos brinquedos?

Pedi então um copo cheio de absinto, para tomar banho e limpar os poros.
Óbvio que era mentira, mas eles acreditavam em qualquer besteira que eu falasse.

Trouxeram o copo de absinto. Quando foram dormir eu sentei na borda e me despi, pensei um pouco sobre uma última frase para falar, mas era um daqueles malditos dias que não consigo dar nomes as coisas.
Escorreguei pra dentro do copo, senti uma leve ardência nos olhos e logo meu nariz gritou de dor ao sentir o álcool entrando.
Depois de dez ou quinze segundos estava completamente amortecido, e sorri.

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