Rain

Categories silence

Volto pra casa tentando não pisar nas divisórias da calçada, transformando tudo num jogo bobo, ajuda a abafar as vozes vindas da mesa que fica ali no cantinho da cabeça. Cabe umas 4 ou 5 pessoas, alguém botou um lençol pra servir de toalha, achando que se fosse colorido ninguém ia perceber. Sempre tem gente falando alto, debatendo umas coisas sem sentido com uma versão minha de uns 30 centímetros que fala rápido demais e o resto da mesa fica perguntando “oi? o que?” e rindo. Na maior parte das vezes interrompem minha miniatura e mudam de assunto. Se eu gritar aqui fora todo mundo da mesa fica quieto por uns 12 segundos, mas logo lembram de outra história.

Meu pai dizia que quando a vida estivesse uma merda era só lembrar da chuva, do mar, do espaço e da última coisa que eu achei na rua e quis levar pra casa.

Em dias mais emaranhados que o normal costumo servir uma taça grande de algo que tem o incrível poder de diminuir o universo, mas só dentro da minha cabeça. Aquela mesa começa a ficar bem pequena, as vozes entram numa frequência que não consigo perceber. O mundo todo entra em foco nas beiradas e acaba mais borrado na ponta do nariz. Só minha miniatura não muda, mas começa a bagunçar minhas gavetas pra fazer birra.

Ontem ouvi alguém gritando meu nome na rua, mas não virei pra olhar. Quando eu tinha uns 12 anos cansei de ter que analisar se tinha ouvido meu nome mesmo ou se era alguma espécie de entidade tentando se comunicar, aí decidi nunca mais dar atenção a quem grita meu nome na rua. Hoje me senti mal e pensei o que custava ter olhado ontem, só que mesmo que tivesse virado não consigo enxergar muito bem. Semestre passado, num leve surto primaveril, resolvi mudar meu corte de cabelo, e agora a franja fica caindo no olho.

Queria que meu pai tivesse escrito coisas à mão, mas ele dizia que sua letra era muito feia. Tenho levado um caderninho na mochila pra ver se algum dia escrevo algo sentada num parque, pra que nunca desejem que eu tenha escrito mais coisas à mão. Só que eu passo pelos parques e tenho vergonha de sentar.

Nunca gosto de olhar direto pra câmera nas fotos que outras pessoas tiram de mim. Toda foto fica com uma versão nossa presa lá dentro e não gosto de pensar que ela vai ter que encarar todo mundo que olhar pra foto pelo resto da existência. Prefiro que essa versão nas fotos esteja olhando pra outra coisa, sem encarar ninguém.

Categories silence

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *